Ela ficou parada na minúscula área de serviço. As roupas estavam quase secas. E, as que ainda não, iriam para a secadora. O dia estava no fim, exatamente naquele entremeio de não ser tarde, nem noite. Entardecia.
Adelaide encostou os cotovelos no parapeito e apoiou o queixo entre as mãos. Respirou fundo, como só os tristes respiram. Sua tristeza era incomensurável, inalterável, colossal. Buscou recursos através dos médicos, psicólogos, anti depressivos, chás e em fontes alternativas cartomante, yoga e reiki. Balela. A tristeza permanecia inabalável.
Do lado de fora, diante dela, começou uma chuva fina, mansa, cor de ouro, enquanto ela pensava em si mesma, turbilhão de idéias convergiam para um mesmo ponto, sua permanente dor.
De repente, um pássaro com máscaras agarrou-se na tela que tinha a função de protegê-la do mundo de fora. Assustou-se com aquela pequena ave cinza chumbo de peito amarelo, olhos brancos, faixa preta nos olhos. Procurou na memória o nome, qual era mesmo?...Bem-te-vi. Há tempos não via um. E agora estava ali pousado, tão próximo, a se esconder da chuva. Inusitado. Mas também não é comum ser tão triste. Adelaide tentou passar os dedos pelas frestas em sua direção, ele voou arisco, livre, como a dizer sou dono de mim. Deixou um som de asas e um rastro furando a chuva amarela. Vazio. Era tão lindo, de doer. Sem entender teve uma vontade de ... de tantas coisas, que não soube nem mesmo definir. Concentrou-se no pássaro, quis segui-lo mais que apenas com os olhos, esforçou-se a ponto de forçar o seu rosto contra a tela, acompanhou o vôo e o viu sumir em uma árvore próxima ao BH Shopping. Ah como queria ter feito aquele vôo sob a chuva.
Lembrou de uma fração do passado, voltava da escola, a chuva a surpreendeu ainda no meio do caminho para casa. Colocou o livro dentro da mochila e continuou caminhando. Mesmo que os pingos grossos teimassem em lhe fechar os olhos. Outras crianças também determinadas faziam o mesmo caminho e iniciaram o eterno pular nas poças. Como era divertido pular em poças. Riu da lembrança e riu também do pito levado em casa, banho quente, chá e sopa. Até xingo era bom, era uma mistura de preocupação com carinho. Isso quando, no meio de um deles, não surgiam risos, até doer a barriga e a frase da mãe: - Ai minha filha, já nem agüento mais! Mas, nem agüento mais ser tão feliz. Assim era a sua mãe divertida, leve, colo macio. Nunca quis sair daquela pequena cidade, nada de sonhos altos, só aqueles que parecem já estar aterrissados. Família grande, mesa farta, colchas limpas e cócegas no marido. Do seu quarto escutava os pais conversando, varando a noite. Não entendia as palavras, mas em meio a uma e outra - risos. Esta era a forma de sua mãe ser feliz.
Quando mesmo deixara de ser feliz? Não sabia. Mas tinha uma gana de ir para a capital. Estudar, formar, ser alguém. República de estudantes, muitos trabalhos para chegar ao final do curso de Administração. Pequenas perspectivas, comuns aos recém formados. Até que conheceu o marido, executivo, bem sucedido e todo o ar de seremos felizes para sempre, por ele representado. Casamento, a proposta de largar o emprego, a constatação de não ter feito uma boa escolha. Tentou retornar, o marido não admitiu que fosse para a mesma empresa. E, na verdade, administraria o quê? Trabalharia para os outros? Não. Mulher minha, não. Por fim, Adelaide tentou de tudo para se libertar - Herbalife, Natura, Avon, para conhecer pessoas, ampliar o seu pequeno mundo estacionado no sétimo andar, do Belvedere, 153 m2, 4 quartos, 5 vagas na garagem e vista definitiva quitada. Som de asas e um rastro furando a chuva amarela.
A chuva aumentara, lá embaixo as pessoas ziguezagueavam entre os carros. Buzinas. Um semáfaro estragara. E Adelaide, que há tempo, não via nem chuva, resolveu assistir. Vistoriava cada detalhe. Pequeno acúmulo de água se formava próximos ao meio fio, de cada lado da avenida. Pessoas com trajes esportivos corriam por outros motivos. Esqueceu-se completamente da tristeza e agora era só olhos a contemplar a vida.
E por mais uma vez, o pássaro voltou e pousou na tela. Surpreendente. Estava de novo ali, pousado, sacudindo as penas molhadas de chuva. Pequenas gotas atingiram, em cheio, o rosto de Adelaide. Ela riu, como a mãe ria. Fechou os olhos e sentiu que o pássaro trouxera consigo o cheiro da chuva. E esta, era completa, cheiro, vento e gotas. Adelaide sentiu-se de novo criança, estava no quintal, debaixo do pé de abacate. A mãe encharcada ao seu lado: - Veja filha, ficamos molhadas, ai meu Deus, que cabeça a minha! Adelaide, enrolada em uma toalha era carregada pra dentro de casa.
- Olha mãe, olha como a chuva é bonita.
- É linda, filha. Agora precisamos entrar.
- Espera, espera mãe, deixa eu só falar uma coisa pra chuva...
Faz-se o barulho de chave girando na porta da sala. Adelaide abre os olhos. Sobressalto. É o marido chegando. A porta se abre. Ele entra. Coloca o notebook no aparador. A chave, no chaveiro. Alarga o nó da gravata.
- Adelaide?
Ela não quer responder.
- A de laide...
Não saberia o que falar. Fechou os olhos. Pássaro apertado entre as mãos. Desejou, desejou muito falar para o marido:
- Fala comigo, como a chuva...
Ele a encontrou na área de serviço, muda feito planta em dia de chuva. E dentro dela não tinham palavras, apenas um som de asas e um rastro furando a chuva amarela.
*Nome do texto inspirado na peça representada pela Cia de Teatro Adulto. Escutei a matéria pela Rádio Guarani em um congestionamento enorme por conta da reforma do BH Shopping.