sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Capela

Sabe, eu não sou daqui.
A gente finge que é para sobreviver.
Eu tenho essa facilidade:
SOBREVIVO.


Tiraram o seu rosto da água. Buscou o ar, com toda a força dos pulmões, diafragma e vísceras. O ar entrou com dificuldade, insuficiente. O cheiro de alho torrado, jogado em óleo quente, invadiu a capela. Sua cabeça foi empurrada, de novo, para dentro da água. Bolhas. Zumbido nos ouvidos. A água querendo invadir suas narinas. A cabeça latejava.
- Onde está o dinheiro, FILHADAPUTA?
Puxaram mais uma vez sua cabeça. A água escorreu pelo pescoço e peito arfante. Virou o rosto para cima. Olhou para cada um dos três. Sabia que não devia. Nenhum homem mal gosta que os vistoriem por aí. Mas ele era assim - contemplava. Era a sua forma de se afastar da vida. Expectador.
Ainda menino, era o que ficava mais tempo submerso na lagoa da Pampulha. Fazia graça para os vendedores ambulantes. Pipoca, cachorro quente, churros. Era esse o pagamento dado àquele que ficasse mais tempo sem despontar a cabeça da água. Por vezes desmaiara. E talvez, por pena ou compaixão, tinha o seu ganho. Comia. Levava o nome de piaba, girino pelos feitos e cascudos, pontapés dos meninos que não o venciam na água. O que importa? Não importa. Comia a boca grande, sem a necessidade dos dentes. Quem muito mastiga tem a comida roubada. E comida depois que entra na barriga, é só do dono dela. De outras vezes carregava compras, lavava carros, vendia balas, batia carteiras e chupava o vício dos velhos. Sobrevivia.
Desataram os fios que prendiam seus pulsos.
- Quebra os dedos dele.
Alguém segurou os seus braços. Marreta. Estalos. Um urro contido. Pelo menos as mãos foram soltas. Doíam os dedos e os pulsos. Deixou as mãos ficarem coladas sobre o encosto da banheira velha, cocho de bois e vacas.
Fora o quinto filho não desejado. Nasceu na favela, filho de mãe sem pai. Porque pai eram muitos. A mulher que o tivera, livrara-se dele. Colocou-o, sobre farrapos, dentro do guarda roupa sem portas. Improvisou uma, com um lençol velho. Livrara-se. Desceu com a placenta numa sacola plástica do Epa. Sumira. E, ele ficou sem notícias dela, ou de quem era, assim, já no início da vida. Crianças o acharam à noite, depois de invadirem o barraco na esperança de alguma comida esquecida.
- Tem um gato aí no guarda roupa.
Disse a mais nova e magra. E depois desse feito sobreviveu a anemia, pneumonia, dengue, sarampo, rubéola, DST, difteria.
- Se não falar vai ter que rezar...
- Esse aí tem a boca colada.
- Mas aqui todo mundo fala, MANÉ, a piaba vai chorar!
Cheiro de cigarro mentolado, feito a boca da mulata DIVINA. O cigarro pulou de mão em mão. E o seu pensamento variava, ora aqui, ora com a mulata estendida ao seu lado. Os homens descansavam. Confissão cansa.
- E não é, que cê tá ficano bom nisso, minino?
Os dentes alvos da mulher sorriam pra ele. Tinha 11 ou 12 anos, não sabia bem. Afinal, quem lhe contara os primeiros anos? Enquanto estava no orfanato sabia de cabeça a data e o tempo, quando fugia para rua, perdia-se no mundo, no tempo, na vida. Fora e voltara, até não ter mais idade. E daí por diante só a rua, as marquises. A mulata foi a primeira mulher que tivera. Se aquilo foi à força, não podia dizer. Com ela, gostava de ficar, assim, entregue. Ela tinha lá suas preferências, 2 ou 3 meninos da Guaicurus. Dizia que homem depois que cresce não presta. E faz tudo a maneira deles. Gostava das noites que a mulata lhe chamava. Entrava no quarto e ela lhe dava banho. Depois o enchia de cheiros, perfumes baratos, coloridos, lavanda disso e daquilo. Rosa, roxo, azul e amarelo. Vistoriava o seu corpo em busca de alguma evidência de doença. Depois de lavado, cheirado, vistoriado, ela lhe dava carinho. E ensinava-o a tamborilar couro de mulher. Ele obedecia, feito cordeiro. Servil. Aflito. Tonto. O corpo todo em comichão. Formigando. Sentia explodir por dentro. E os gritos da mulher longe, cada vez mais longe. Depois ela o parabenizava e dizia:
- Não vai me esquecer, heim muleque, fui eu que te ensinei a ser homem.
- Num esqueço não DIVINA, você é uma mãe pra mim.
E eles brincavam de mãe e filho. Ela representava. Achegava-se ao guarda roupa e dizia:
- Meu filhinho, voltei, mamãe tá aqui.
E ele sorria e chorava:
- Mamãe louca, mamãe louca, por que demorou tanto?
Daí Divina lhe dava leite, em bons tempos, biscoitos.
Um dos homens se levantou.
- É agora ou nunca, fala ou morre, desgraçado.
Ele continuou mudo. Queria que a Divina estivesse ali. Ela acalmaria com brandura cada um daqueles milicos.
- Calma lá, com o que vai fazer com o infeliz.
O homem o arrancou do chão. Colocou-o de pé. Ele caiu de novo.
- É aí que quer ficar? E aí? Então fica.
O homem avançou feito um possesso sobre ele. Apertou-lhe o pescoço. Sentiu a traquéia colar. Chutaram sua boca. Perdeu os sentidos. Nada lhe doía. Depois agarraram sua cabeça e bateu com ela contra o chão. Uma. Duas. Três vezes. Um estalo seco, oco...
- Quebrou a cabeça dele, PORRA.
O sangue escorria de sua boca, espalhava suavemente pelo chão.
- Que MERDA!
- Deixe esse farrapo aí, larga, larga isso no chão, depois alguém limpa.
- À noite a gente volta aqui e enterra junto com os outros.
- MERDA. Agora esse dinheiro fica pros mortos.
- E morto lá precisa disso?
Os homens saem rindo para o trabalho. Passarão em suas casas, banharão seus corpos, vestirão a farda, despedirão das esposas e dos filhos.
À noite retornarão para a capela. Não encontrarão o corpo. Sangue seco no chão e só.
- Cadê o DESGRAÇADO?
- O sargento deve ter enterrado.
O homem entra com sua farda de três divisas.
- Porque estão olhando pra mim?
- Enterrou o corpo?
- Não...
Os três se olham desconfiados. Quem fez a brincadeira de esconder o corpo?
Ninguém o procurou. Não vistoriaram os móveis velhos escorados, na balbúrdia do local. Retornam para suas casas, esposas e filhos. Jantam. Com a certeza de que o outro armara a brincadeira.
De madrugada uma pequena porta, de um velho guarda roupa se abre. Ele estava lá. Arrastara-se com dificuldade e se camuflara no primeiro esconderijo que vira. Respirou fundo, como quem respira a primeira vez.
Nascera de novo. SOBREVIVERA.

A Casinha

O pequeno corre do pátio em direção à grande cozinha. As outras crianças batem em revoada na mesma direção. Sentam-se nos bancos compridos. E, lentamente, uma a uma das canecas são preenchidas com café e leite quente. Para comer deve-se escolher pão com manteiga, bolacha ou biscoito de polvilho. Na verdade toda opção é gostosa, mas o menino se contenta com meio pão com manteiga. É suficiente. Almoçou bastante, fizeram o seu prato preferido hoje, purê de abóbora com carne cozida, o que comeu até se fartar com um bom tanto de arroz e feijão preto.

Depois do lanche da tarde terá pouco tempo para brincar. Às cinco horas toca o sino para o jantar. Pretende acabar de construir sua casinha no final do pátio, onde brincam as crianças menores. Sua obra já está quase pronta, é bem provável que termine antes, dos seus pais chegarem para lhe buscar.

O menino procura em qual das mesas está seu amigo. Faz um sinal com as pequenas mãos para que o amigo providencie o término do lanche. Tiago engole a força um pedaço maior de biscoito de polvilho, que desce arranhando a garganta. Os olhos enchem de lágrimas, por conta do sufoco. O menino ri da expressão estranha no rosto do Tiago e o amigo também. Responde o sinal espalmando uma das mãos, como quem diz, espere mais um pouquinho. O menino espera que o amigo termine.

Todas as crianças colocam as mãos postas e agradecem:
- Muito obrigada Menino Jesus pelo alimento que acabamos de comer, que nunca falte em nossa mesa e de nenhuma família.

O menino confere se Tiago está pronto para sair correndo para o pátio. Vê o rosto do amigo que o desafia a chegar primeiro. Todos correm. O menino e Tiago vão sendo pouco a pouco ultrapassados pelas crianças maiores. Um adulto grita:
- Cuidado, assim vão se machucar.

Descem as escadas, ultrapassam o campo de futebol arranjado pelos maiores. Seguem em direção ao extremo do terreno, à direita, onde o muro se encontra em ângulo de 90 graus.
- Rápido Tiago, a gente precisa terminar essa obra hoje.
- E se não der tempo?
- Vai dar, vai dar. É só você fazer o que eu mando. Pega um pouco mais de água, o caneco eu escondi dentro da casa pra ninguém pegar.

Tiago corre até a torneira, de onde sai à mangueira de aguar a horta. Enche o caneco. Retorna para perto da casinha, vai molhando a terra, cavando e misturando, formando um barro mole que entrega ao amigo. O menino aproveita os tijolos restantes da última reforma da grande casa, coloca um sobre o outro, intercala com barro, retira as sobras com a mão.
- A casa tá ficando boa. Vou colocar uma porta aqui.
O menino afasta para que o amigo veja o local exato da futura porta.
- Não tem jeito de fazer isto. O tijolo vai cair daí de cima.
Tiago coloca a mão na cabeça, em um gesto que demonstra total impossibilidade no intento.
- É só a gente colocar um pedaço de pau aqui e ele segura o tijolo de cima.
Responde o menino.
Tiago não entende de onde o amigo tira tantas idéias para as suas construções.
- E desse jeito a gente vai fazer a janela. A gente prega um pedaço de pano e abre e fecha a hora que quiser.
O menino tira o pano do bolso que disfarçadamente conseguiu do quarto de costura. O tecido é vermelho e tem flores amarelas e verdes. Tiago pega o pano e o estende diante de si.
- Eta, é bonito mesmo. A casa pode ser minha e sua?
- Pode.
O menino responde sem perder a concentração sobre sua obra.
- Mas você não disse que vai falar pro seu pai e pra sua mãe que a casinha é sua?
- Disse. Aí eu falo que é sua também, porque você tá me ajudando.
Tiago fica imensamente feliz, com a proposta do amigo. Pensa na cara das crianças mais velhas na hora que verem a casinha. Lembra que trouxe algo escondido também:
- Ah, eu trouxe uma coisa também.
E já vai tirando do bolso do short.
- Você conseguiu mais pano?
- Não. É um pedaço de pão com manteiga. Você qué?

Estende o pão amolecido para o amigo. Que recusa, balançando a cabeça negativamente, como a dizer que isto é desnecessário uma hora daquela.
Tiago tenta limpar o barro que se mistura ao pão. Percebe que a tentativa o torna ainda mais sujo. Mas come assim mesmo.
- Hum tá bom...
Começa a dançar improvisando uma repetição ritmada:
- Tá bão, tá bão, tá bão meu pão!
Os amigos riem. E o menino imita Tiago.
- Tá bão, tá bão, tá bão meu pão! - Tá bão, tá bão, tá bão meu pão!
De repente entendem que estão sendo observados por outras crianças. E como não querem chamar a atenção para a casinha, despistam e retornam ao trabalho.


A construção do telhado foi bem fácil, utilizaram folhas de bananeira. Assim que consideraram a obra terminada, olharam um para o outro, afastaram ao mesmo tempo, para observar a casa de longe. Estava realmente linda. A cortina da janela contrastava com a folha verde da planta e com o vermelho do barro ainda brilhante.
O sino toca. Algo dentro do menino agita, não terá mais tempo de curtir a sua casa recém construída. Está quase na hora dos seus pais chegarem. Olha para Tiago que já demonstra querer subir para o jantar. Corre. O menino vai atrás, ora olha o amigo, ora a casinha que vai se tornando aos poucos menor. Procura uma mesa e um lugar, não antes de lavar as mãos. Senta-se em frente ao prato esmaltado branco. Alguém lhe serve uma sopa com macarrão de letras, abóbora e carne. O menino entende que a sopa foi feita com o resto do almoço. Mas não tem problema, é bom assim mesmo. Enquanto leva as colheradas à boca pensa em sua casinha. Faz planos. Verifica os erros mentalmente e as melhorias que podem ser feitas. Olha para o relógio. Toma uma escolha, a partir de amanhã começará a construir pontes. Observa a colher que conduz à boca. Esta colher tem mais letras A’s que a anterior. E assim fica até a última colherada. Pensa na casa e verifica as vogais na colher, pensa nas pontes e verifica as consoantes.


Acabado o jantar, todos devem se preparar para o banho. O menino se preocupa – quando os seus pais irão chegar para levá-lo para casa? O banho também é bom, morno, sabonete branco com cheiro, faz espuma e limpa o restante de terra que sobrou nos braços. Depois de seco coloca o pijama azul claro parecido com o de Tiago, penteia os cabelos, escova os dentes. Sente as mãos em seu ombro, de alguém que lhe alerta que está na hora de ir para a cama. Deixa-se ser conduzido até o quarto, Tiago segue junto. Deitam-se, cobrem-se com o cobertor listrado. O sono chega de manso com passos de estopa. Ouve a voz do amigo:
- É amanhã que seus pais vêm lhe buscar?
- Eu não sei.
- Mas você não disse que assim que terminasse a casa eles viriam?
- Disse. Mas acho que vai ser assim que eu terminar a ponte. Você me ajuda amanhã?
- Ajudo. Você me convida pra ir a sua casa?
- Convido, Tiago.
A voz de algum adulto diz de longe:
- Silêncio meninos, tá hora de dormir.
Um adulto apaga a luz do dormitório. As crianças voltam a se embriagar de sono. O menino tenta reconhecer os objetos no escuro, através da escassa claridade vinda da lua. Reconhece a cama do Tiago, a fileira de beliches à sua direita. Sente-se confortável. O sono já lhe faz ver coisas. Ainda enxerga o quarto e a cama dos outros meninos, mas também já vê a casinha no fundo do pátio, a colher cheia de letras.
Não lhe falta nada. Nada mesmo. Tem quase tudo que as outras crianças têm. Roupas, comida, adultos, outras crianças, projetos. Em seu sonho começa a andar pelo orfanato. Vê as outras crianças dormindo. Tem quase tudo, só falta uma coisa. Não há nada que una o suco à jarra, a jarra à mesa, não há nada que vela o sonho das outras crianças. Existem apenas coisas e pessoas. Não há nenhum tipo de cola. As mãos do Tiago misturam o barro que une um tijolo ao outro. A sua casinha aparece em seu sonho, um tanto maior que a do pátio, de forma que pode entrar dentro dela. Desce as escadas do refeitório, pára diante da porta, observa a cortina de chitão vermelho balançar na janela. Uma grande colher com macarrão de letras flutua em sua frente. De novo pensa: preciso de um tipo de cola. As letras A’s flutuam, flutuam, aumentam. Lembra da professora dizendo A de amor. Preciso de um tipo de cola. A porta da casinha está próxima. E de repente tudo parece fazer sentido. Vê Tiago descendo as escadas correndo:
- Eles chegaram, eles chegaram.
O coração do menino dispara. A colher flutua cheia de letras que se mexem e se colam. A casinha parece estar viva. Tudo está em silêncio. Suspense. Só cores e cheiros se agitam. Sente o coração maior que o peito a lhe bater nos ouvidos. A porta da casinha se abre, as letras se juntam e tudo se transforma em uma só palavra, que cola todas as coisas e pessoas e o número de dias de espera:
- Filho...

A Vida dos Outros

Resolveu ser outro, só por um dia, queria sentir, pensar, viver a verdade dos outros. Não é tão bom um dia após o outro em um escritório de contabilidade, café sempre requentado, ar condicionado estragado e o cheiro de lavanda do desinfetante barato. Precisava de um dia livre. Então, ligou para o trabalho e inventou o adoecimento de uma tia, que não tinha. Foi logo falando pelo telefone que precisava viajar às pressas para o interior. O austero e metódico supervisor mostrou-se solicito, perguntou mundos e fundos. E ele, que queria ser outro, mostrou-se aflito: - Desculpa, senhor Hélio, mas se eu não desligar o telefone agora, perco o ônibus para ...Piranga. Gostou do nome. Se fosse outro, até podia ter nascido lá. E foi tão veemente na pressa, que ouviu do outro lado da linha:
-Desculpa eu, meu filho, vá, vá logo. Olha, cuida bem da sua tia. Estimo as melhoras!

E, não é, que é bom ter uma tia, mesmo que doente? Sentiu um lampejo de compaixão. Um tipo de responsabilidade terna. Um sentimento não tão grande quanto o dedicado a uma mãe, mas um sentimento irmão deste, um amor torto. E já que era outro, tirou a mochila de cima do guarda roupa, sacudiu para que a poeira saísse dela. Jogou lá dentro duas mudas de roupa, pegou uma caneta e as palavras cruzadas, mas desistiu logo, sendo outro, possivelmente não gostaria de fazer palavras cruzadas. Trancou a porta do quarto, fingiu não conhecer os outros hóspedes, deixou a chave na recepção. Saiu. Sentiu o dia morno, que já se anunciava quente. Olhou para os lados. O que faria? Mas, como o que faria? É obvio, vou para Piranga. Desceu até o ponto, não o de costume para ir ao trabalho, buscou o rumo da rodoviária.
Caminhou como quem vai para Piranga, visitar a tia doente. Desceu na Afonso Pena, atravessou a avenida correndo. Tumulto, pessoas indo para o trabalho, o sino da Igreja São José tocou, o semáforo abriu, fumaça do cano de descarga dos ônibus, táxi coletivo parando e saindo. As primeiras horas de um dia sendo outro. O que o aguardava? A vida tinha pressa, flashes, o estudante no ponto de ônibus, o cadeirante na faixa de pedestre, o homem de terno dentro do carro importado, a mulher de saia curta, tantas possibilidades. E ele podia ser todas. Caminhava e girava a cabeça, procurando sentir o que sentiam as pessoas à sua volta. Mistura. Nunca sentira tantos cheiros, tamanha liberdade. Quis sair de si.

Sentiu fome, chegou à rodoviária. Pensou comer alguma coisa antes da viagem. Parou na primeira lanchonete bem próxima à escada rolante, comprou antes um jornal, já que nunca o lia e depois decidiu fazer o mesmo pedido da senhora a sua frente.
- Quero um pão de queijo, café e uma salada de frutas. “Salada de frutas?” Enfim, comeu, até que gostou. Embolou o guardanapo. Pronto. Entrou na fila, comprou sua passagem. Precisava aguardar 45 minutos ainda. E já que não era ninguém, colocou-se a ouvir a conversa de quem estava próximo. Quer lugar melhor para não ser ninguém do que numa rodoviária? Ninguém o conhece, está ali só de passagem e possivelmente ninguém o verá novamente. E foi durante um tempo a mãe com o filho no colo, o homem sóbrio solitário, os rapazes que riam de alguma coisa enquanto fumavam. O tempo passou rápido. O dia era leve.

8:45. Desceu as escadas e foi até a plataforma indicada no bilhete. O ônibus estacionou. Foi o primeiro a entrar, buscou a sua poltrona, 13, colocou a mochila entre as pernas. Não ligou o MP4, quis ver e ouvir outras coisas, outras verdades, deixar de ser quem era. Observava cada um que entrava. Sentou próximo à janela. Quem seria sua companhia de viagem? Uma senhora gorda, de ancas largas, aproximou, vistoriou de perto o número da poltrona. “Não, não, não”. Passou. O homem baixo, de bigode, que usava um terno gasto e sujo, rumou para o fundo do ônibus. “Se eu fosse ele, certamente não teria esposa. Nenhum homem que tem uma, anda assim.” Uma mulher com três crianças, entalou entre as poltronas. “Ai que berreiro, Deus me livre” Deixou cair um pacote na cadeira ao seu lado. – Desculpa! Passou a mão no pacote e nos filhos, continuou pelo corredor. Sentou três poltronas após a sua. Um vendedor de água, gritava, chamou sua atenção para fora. “E se fosse vendedor de água? Que tipo de pensamento teria, o que comeria aos domingos? Quantas mulheres já teria comido?” Sorriu dos próprios pensamentos, surpreendeu-se por ter alguém sentado ao seu lado. Uma moça pequena, cabelos pretos e ralos, olhos grandes, boca pequena, pele clara. Leve feito pássaro recém pousado ali.
- Bom dia!
Não era assim, nunca puxaria conversa, mas como se propôs ser outro...
- Bom dia, ela respondeu quase engolindo as palavras.
Sentiu-se confortável para observar a moça displicentemente. Cara dura. Diante dela e com ela assistindo a tudo. Um voyeur às avessas. Sentiu prazer nisto. Desceu o olhar pelo pescoço a mostra, um pingente em forma de gota e o pequeno decote. O vestido decente, claro, rente ao corpo, até os joelhos. Nenhuma sobra, parece ter sido feito pra ela. “Roupas daquele tamanho não deve ser nada fácil encontrar”. Refez o caminho, calmamente. Encontrou os olhos dela estatelados, interrogativos. “Decerto tenta pensar quem eu sou” Insistiu no olhar. Nunca fizera isto antes. Sentiu-se forte, viril até.
- Está calor, não é mesmo? Ela disse envergonhada. Preferiu não responder, assim o constrangimento dela aumentaria. “Não baixo a guarda e retiro as suas”. Pensou.
- Qual o seu nome?
- Nidinha. Ela respondeu ainda mais aflita, contorcendo o pingente entre os dedos da mão direita. Ele gostou, gostou muito do nome no diminutivo. Quantos nomes poderiam ter aquele apelido. Era uma boa idéia. Um nome que não é o verdadeiro nome. “E o seu?” É claro que esta seria a próxima pergunta. Não conseguia pensar em um nome que não fosse o que tinha. Resolveu não dar tempo para que perguntasse o seu. Seria assim, ela viajaria ao lado de alguém sem nome.
Nidinha olhava para ele aflita, como que pedindo socorro. Puxou a mala que estava no chão, com os pés. Ele se ofereceu para ajudar.
- Quer que eu coloque a bolsa no bagageiro?
- Se não for incômodo.
- Não, não é. “Como assim não, não é?” Riu de si mesmo, ou melhor, riu desse outro. Direto, sem escrúpulos, mas quase cavalheiro. Levantou. Ficou de frente para ela, passou bem devagar. Endireitou a postura para que parecesse mais forte. Ao voltar, deixou suas pernas encostarem nas dela. Não pediu desculpas. Sentou. Levantou o suporte de braço, que dividia as poltronas. Viu que a moça ficou incomodada. A pequena recostou-se procurando por uma melhor posição. Resolveu, ousar um pouco mais. Deu um leve tapinha na perna esquerda da moça:
- Quer ir na janela?
- Não obrigada, não gosto de janela.
Gostou da idéia de não gostar de janela. Camaleou-se:
- Eu também não, mas como não tinha nenhum outro lugar vago...
- Ah..
- Você vai até Piranga, ou desce antes?
-Até Piranga.
-Ah..
Silêncio. Ambos se olharam e do pouco que ele viu gostou. Mas não da moça exatamente. Gostou da idéia de ser outro e poder dizer ou fazer o que bem quisesse.
- Você mora em Piranga?
- Não, estou indo visitar uma tia que adoeceu de repente.
- Puxa, que chato, sinto muito.
- Eu também.
- E é grave?
- Infelizmente sim. Reforçou a entonação ao dizer infelizmente, viu o peito da garota se encher de ar, o pingente subiu e desceu docemente, viu que ela se apiedara dele. Emendou logo:
- É dengue.
- Dengue?
- Hemorrágica... riu por dentro.
- Meu Deus, que horror. Coitada da sua tia.
- Coitada da minha família também. É uma tia muito querida sabe? Mas infelizmente ela e minha mãe brigaram quando eu era bem novo. Mudei de Piranga e nunca mais voltei.
- Nossa, como é triste.
- É de doer. Eu sempre quis conhecer a minha família.
As idéias surgiam aos borbulhões em sua cabeça. Quanto mais atenção a moça lhe dava, mais prazer sentia e mais vontade de contar com detalhes a sua trágica e nova vida. A mãe que fora rejeitada pela família, por ser mãe solteira, ele que não conhecera o pai e que fora criado longe de todos, o pedido da mãe antes de morrer para que procurasse os parentes.
- E sua mãe morreu de quê?
- Leucemia. E desde então eu estou sozinho...
E como verdade acaba sendo o tanto de certeza com que se conta um fato, a verdade de sua nova vida foi surgindo enquanto a viagem prosseguia.
- E você não tem receio sobre como a sua família vai lhe receber?
- Na verdade tenho, mas é tão importante pra minha mãe, ou melhor, era né. E acho que é isso que eu preciso fazer. Conhecer a minha família, defender a imagem da minha mãe. Olha que mãe melhor, eu não podia ter tido.
Cheque mate, estava feito. Nidinha, estava entregue, queria cuidar dele, ofereceu biscoito recheado de chocolate e ele comeu, comeu e detestava chocolate. Mas gostava dessa moça toda dada, crédula, ingênua.
- Você já me contou a sua vida inteira e ...
- Inteirinha. Repetiu olhando-a de cima a baixo.
- E eu nem sei o seu nome.
Pronto. De novo. Agora não tem jeito, preciso ter um novo nome. Resolveu brincar com ela.
- Eu lhe dou um presente se você acertar.
- Como assim, acertar o seu nome? Impossível.
- Não é não. Meu nome é muito comum e todos falam que o meu nome é a minha cara.
Esperou que ela o batizasse.
- Olha, não vai rir de mim heim, eu acho que é João.
- João? Tentou se imaginar João, gostou. Nome simples, comum, forte.
- Não falei que ia acertar?
-Você está brincando...Não acredito que é isso mesmo.
- Quer que eu lhe mostre meu RG?
- Não, claro que não. Respondeu sorrindo. É que é difícil de acreditar.
“Ótimo.Mas é claro que você acreditaria.” Afinal se vê sempre aquilo que se acredita.
- Pois acredite, minha mãe escolheu esse nome em homenagem ao meu avô. Adorou a sua própria resposta e ainda aumentou sua família com mais um membro. Se continuasse assim até o final da viagem teria uma família enorme.
- Qual é o nome da sua tia?
- Nenêga.
E quem não tem uma parenta chamada nenêga? E além do que, era a forma camaleônica de nome que é, e não é.
- Nenêga. Ela repetiu. Eu conheço pelo menos dez nenêga em Piranga.
Sentiu o perigo, ela farejava, buscava mais respostas que ele não tivera tempo para pensar.
- Onde ela mora?
“Ai, merda”
- Não sei bem, ela está no hospital, vou visitá-la.
Ele precisava freiá-la. Caso contrário poderia ser descoberto e a viagem seria desagradável, quando mal iniciava seu único dia de uma nova vida. Pegou o pingente da moça. Segurou-o entre os dedos. Fingiu interesse pela bijuteria. A moça assustou-se com seu comportamento.
- Bem, até agora estou só eu falando de mim, fale um pouquinho de você...
Soltou o pingente, deixou Nidinha livre para falar de si. Árvores, carros passando, a paisagem já modificara, distante do centro de BH, longe de quem era. À medida que o ônibus seguia, camaleonizava. Feito a paisagem de fora. O tom de terra vermelha, vindo das mineradoras, cobria toda a BR e as plantas. Sentia-se mais ele mesmo, por mais estranho que fosse. Era plástico, elástico, flexível, mutante. Cada vez que Nidinha terminava um assunto ele arrumava uma forma de aproximar dela. De tal jeito que ela já não fazia interrupções, de um assunto pulava para outro, contava detalhes da cidade e dela mesma ininterruptamente.
Parada para lanche, em Lafaiete. Desceu primeiro, ela disse que viria depois. “Que seja, assim posso pensar mais algumas coisas”. Resolveu seguir o primeiro passageiro à sua frente, que também saia pelo corredor. Era o homem de bigode e terno gasto. Sentou próximo à sua mesa, atentou o ouvido para poder fazer o mesmo pedido.
- Uma dose de conhaque. Bebeu à mesma maneira, de um gole só. Enquanto esperava o seu pedido, bebeu a segunda dose. “Que merda, escolho logo um alcoólatra”. Não tinha o costume sendo o outro de antes, de beber, mas na sua vida nova, como João bebia e adorava conhaque. Chegou seu pedido: Uma lasca de torresmo, peludo, gordurento. Sentiu náusea. Mas precisava esquecer antigos hábitos. “E não é que é bom?” A gordura envolveu sua boca, escorreu no canto direito. Limpou com o canto do braço. Sentiu-se leve, já fazia planos de mais um dia sendo João. Emendaria logo a sexta feira e retornaria na segunda para o trabalho. Até lá, veria que rumo daria a doença da tia. “O quê, mais um conhaque?” Bebeu o terceiro, levantou, foi ao banheiro. Usou o mictório, lavou a boca e o rosto. Procurou papel toalha para secar as mãos. Não encontrou, secou-as na calça mesmo. Viu-se no espelho, quase não se reconheceu. Gostava de ser João, tinha uma tia doente, não gostava de janelas, nem palavras cruzadas, adorava biscoitos de chocolate, achava torresmo irresistível e era alcoólatra.
Sentiu vertigens. Voltou para o ônibus, lembrou que não inventara nenhuma história, mas já nem conseguia. Queria dormir. Nidinha não estava na poltrona. Sentou próximo à janela fechou os olhos, sonolento. Não tinha vontade de conversar, precisava dormir. O ônibus chacoalhou ao ser ligado, seu estômago revirou um pouco, o sonho era insuportável, as pálpebras eram forçadas para baixo. Dormiu. Dormiu todo restante da viagem.
Acordou atordoado. O ônibus estava parado. Escutou Nidinha falando:
- Coitado.
Outra voz de mulher dizia:
- Dengue hemorrágica? Meu Deus...
Sonhava, ou Nidinha falava com ele enquanto dormia? Olhou para fora do ônibus. Algumas pessoas andavam na plataforma carregando bagagens. O motorista e o trocador estavam lá fora. “Alguma parada ou já era Piranga?” Sentia-se tonto, enjoado. Olhou para o lado, procurando por Nidinha. A poltrona estava vazia. Algumas pessoas estavam de pé no corredor, todas olhavam para ele, como quem assiste a um filme. Não reconheceu ninguém, como sendo passageiro do ônibus. Um senhor grisalho disse:
-Ele acordou.
Parecia que sua nova vida estava sendo narrada. Ouviu uma outra voz:
- Nidinha, ele acordou.
Nidinha surgiu do meio do grupo, estacionado no corredor. Ela aproximou dele com os olhos marejados.
- Nidinha? Você está chorando?
- João, qual é o nome da sua tia Nenêga?
- O quê?
- Não sabia o que responder assim pego de surpresa.
- João a sua tia chama Efigênia?
- É...a minha tia chama Efigênia.
- Nossa, que triste... ecoou em cada boca do grupo.
- Ai meu Deus. Nidinha disse, levando a mão ao pingente.
Não conseguia entender o que acontecia.
- Chegamos em Piranga?
- Chegamos, calma João, tente ficar calmo.
- Eu estou calmo, só bebi um pouco, você sabe, estou um pouco nervoso por causa daquela história que eu lhe contei.
- Sim, claro.
Olhar de compreensão. Ele pode quase jurar que viu aprovação dela, por ter bebido.
- Só bebendo mesmo...
- João...
- O quê, o quê está acontecendo Nidinha?
- Eu não tenho uma boa notícia.
- Como assim?
- João, esse aqui é o meu pai, a minha tia, meus primos...
“Ai minha santa paciência, deixa eu sair logo daqui, já nem sei se quero ser João”.
- Eles vieram me buscar aqui na rodoviária. Daí entendi o que aconteceu.
“Puta merda, ela entendeu a minha mentira e já vai a forra”.
- É que a Efigênia, que é nossa vizinha, estava no hospital com dengue hemorrágica, eu não sabia...
- O quê?
- É, a sua tia Nenêga é nossa vizinha.
-É?
- Ela morreu João, agora pela manhã. Sinto muito.
- ....
João pegou sua mochila entre as pernas. Tentou ficar de pé. Bateu a cabeça no bagageiro. Que dor insuportável. Os olhos molharam de lágrimas. Continuava escutando os narradores de sua nova história:
- Coitado, mal conheceu a tia e está tão sentido.
- Agora, ta órfão de tudo.
“Puta merda, mal sou outro e já perco um parente.”
A cada passo no corredor apertado recebia um abraço e um sinto muito de algum parente da Nidinha.
- Coragem meu filho!
- Deus quis assim.
- A Efigênia dizia mesmo de um sobrinho que nunca mais viu. Ela esperava por você, sabia?
Do corredor apertado do ônibus, seguira outro ainda maior. A notícia pela cidade de Piranga, curiosos, café na casa dos parentes, a casa vazia da tia adotada, velório e enterro. Fausto nunca mais voltou para a pousada em Belo Horizonte. Ou melhor, João nem mais se lembrava que um dia fora Fausto. Já não era, era outro.

Chá de folhas amargas para alongar a vida

Aprendi a lidar com o frio tardiamente. E não o sinto, por qualquer ventinho. Recolho as roupas do varal usando uma leve camiseta, enquanto o “termômetro” anuncia 12º , rego as verduras no quintal, desfaço o pequeno acúmulo de gelo das folhas, ainda de camisola, enquanto o dia apenas decola e o vento se encarrega de misturar as folhas da espirradeira com as do pé-de-goiaba e do manacá-de-cheiro. Sei que o meu vizinho pensa, essa mulher é doida, essa mulher é doida, não demora adoecer. Mas não sou doida e nem adoeço, nem mesmo resfrio, e sei bem o por quê.

Meu vizinho, este que mora do lado, sempre esperou a doença, antevê a sufrida desde o início da vida. Marcado por sarampo, icterícia, rubéola, caxumba e outros tantos. Foi competente o suficiente para juntar todas em seu pequeno corpo. Por isso, fez seguro, reserva no banco, para algum tipo de cirurgia que o convênio médico não possa cobrir. Telefones úteis na geladeira, bombeiro, unimed, cardiologista, 191, pneumologista e, outros tantos de números em arial, fonte 12, numa folha A4 cheinha.... Senha do cartão? Deixou com o sobrinho, em caso de necessidade. Fez até um kit hospital, pijama, pente, escova de dente, creme dental, toalha, roupão e pantufa verde, para acalmar os pés e as enfermeiras sempre temperamentais.

Comeu sempre às mesmas horas, respeitando a orientação dos nutricionistas. Chá de folhas amargas, com poder de alongar a vida, logo pela manhã, desjejum completo com frutas e fibras, almoço sempre fresco, do dia, sem conservantes. No final da tarde, caminhada, às mesmas horas, quando o sol já se põe, mas por precaução, uma boa dose de protetor solar 50, mas ele caminha sempre do mesmo lado da calçada, e não vê que o pequeno João cresceu e já saiu de casa, que na última terça feira teve uma correção de formigas-cortadeiras que atacaram a casa da dona Terezinha e lhe custou muitos pés de couve, que as palmas brancas e amarelas continuam nascendo todos os anos. Ao voltar da caminhada, banho morno, escalda pés e para o jantar apenas sopa leve, e de novo o chá de folhas amargas.

E, ele sempre me diz, enquanto rego o jardim, apontado com aqueles dedos finos, coloque uma blusa, um agasalho, cuidado com a pneumonia. Enquanto eu fico pensando, pra quê um nariz tão fino e longo? Se não serve para cheirar nada? E ele continua ralhando até eu escutar o barulho do seu portão sendo aberto e a sua voz sumindo ao entrar em casa: Mulher louca, qualquer dia adoece e ainda me dá trabalho.... E a vozinha dele vai sumindo para dentro da casa, enquanto me distraio com a mangueira a ponto de deixar a água escorrer por minhas pernas e pés. E, eu penso: Esse tipo de frio não mata, o que mata é o frio de dentro, esse que já lhe congela os ossos. Mas não digo. Não por educação, mas para não desperdiçar a alegria do início do dia.

E, não é que de tanto prevenir, antecipando a morte, meu vizinho não a viu sorrateira, entrar pela porta da cozinha e lhe pegar pelos flancos, bebendo o seu chá de folhas amargas? Pronto. Cumpriu a sina. Atingiu seu desejo. Parece até que o vejo dizendo: Viu não falei, por isso me preveni tanto, um dia ela me alcançaria... Não teve tempo de utilizar o helicóptero diferencial oferecido e cobrado pelo convênio médico e nunca utilizado, não teve tempo da empregada ligar, já treinada por ele, para ligar para emergências e dizer: Só estou testando o tempo que gasto para entrar em contato com vocês. Os números dos telefones de urgência ficaram na geladeira, até o carregador do depósito limpar as mãos nele e embolar num canto, o kit para o hospital foi doado para um asilo e a reserva para cirurgia, até hoje paga as viagens para o exterior do sobrinho, que não tem medo da vida.

O vizinho? Coitado, morreu por não se prevenir para a vida. Teve um velório escasso de gente e com sobra de tempo. E, o pior, é que não recebeu visitas no último inverno por conta da gripe suína, não falou ao telefone em dias de chuva, por conta de raios, nunca utilizou a piscina já pronta ao comprar a casa, no fundo da área de lazer desutilizada, por conta dos micróbios, não adoçou o chá de folhas amargas com mel porque doença também gosta de doce, não fez nenhuma das receitas gordurosas da Ana Maria Braga por conta do colesterol ... e morreu.

E eu, às vezes me pergunto, no auge dos meus 98 anos, será que a morte esquece de alguém? Mas o pensamento passa rápido, porque a vida me chama em pluma no alto da espirradeira que já floresce e canta um canto novo, e sei que aquele pássaro é filhote da ninhada do mesmo que esteve por aqui na primavera passada. E continuo a regar as plantas de camiseta, não temo este tipo de frio que a metereologia anuncia, só temo três coisas: não usufruir da minha vida, não curtir as mudanças do dia, e morrer de frio de dentro, deste tipo que ninguém vê, mas pressente, quando lhe apontam o dedo em riste, simplesmente, porque se é só alegria. Tenho medo mesmo, desse tipo de gente.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Fala Comigo como a Chuva *


Ela ficou parada na minúscula área de serviço. As roupas estavam quase secas. E, as que ainda não, iriam para a secadora. O dia estava no fim, exatamente naquele entremeio de não ser tarde, nem noite. Entardecia.
Adelaide encostou os cotovelos no parapeito e apoiou o queixo entre as mãos. Respirou fundo, como só os tristes respiram. Sua tristeza era incomensurável, inalterável, colossal. Buscou recursos através dos médicos, psicólogos, anti depressivos, chás e em fontes alternativas cartomante, yoga e reiki. Balela. A tristeza permanecia inabalável.
Do lado de fora, diante dela, começou uma chuva fina, mansa, cor de ouro, enquanto ela pensava em si mesma, turbilhão de idéias convergiam para um mesmo ponto, sua permanente dor.
De repente, um pássaro com máscaras agarrou-se na tela que tinha a função de protegê-la do mundo de fora. Assustou-se com aquela pequena ave cinza chumbo de peito amarelo, olhos brancos, faixa preta nos olhos. Procurou na memória o nome, qual era mesmo?...Bem-te-vi. Há tempos não via um. E agora estava ali pousado, tão próximo, a se esconder da chuva. Inusitado. Mas também não é comum ser tão triste. Adelaide tentou passar os dedos pelas frestas em sua direção, ele voou arisco, livre, como a dizer sou dono de mim. Deixou um som de asas e um rastro furando a chuva amarela. Vazio. Era tão lindo, de doer. Sem entender teve uma vontade de ... de tantas coisas, que não soube nem mesmo definir. Concentrou-se no pássaro, quis segui-lo mais que apenas com os olhos, esforçou-se a ponto de forçar o seu rosto contra a tela, acompanhou o vôo e o viu sumir em uma árvore próxima ao BH Shopping. Ah como queria ter feito aquele vôo sob a chuva.
Lembrou de uma fração do passado, voltava da escola, a chuva a surpreendeu ainda no meio do caminho para casa. Colocou o livro dentro da mochila e continuou caminhando. Mesmo que os pingos grossos teimassem em lhe fechar os olhos. Outras crianças também determinadas faziam o mesmo caminho e iniciaram o eterno pular nas poças. Como era divertido pular em poças. Riu da lembrança e riu também do pito levado em casa, banho quente, chá e sopa. Até xingo era bom, era uma mistura de preocupação com carinho. Isso quando, no meio de um deles, não surgiam risos, até doer a barriga e a frase da mãe: - Ai minha filha, já nem agüento mais! Mas, nem agüento mais ser tão feliz. Assim era a sua mãe divertida, leve, colo macio. Nunca quis sair daquela pequena cidade, nada de sonhos altos, só aqueles que parecem já estar aterrissados. Família grande, mesa farta, colchas limpas e cócegas no marido. Do seu quarto escutava os pais conversando, varando a noite. Não entendia as palavras, mas em meio a uma e outra - risos. Esta era a forma de sua mãe ser feliz.
Quando mesmo deixara de ser feliz? Não sabia. Mas tinha uma gana de ir para a capital. Estudar, formar, ser alguém. República de estudantes, muitos trabalhos para chegar ao final do curso de Administração. Pequenas perspectivas, comuns aos recém formados. Até que conheceu o marido, executivo, bem sucedido e todo o ar de seremos felizes para sempre, por ele representado. Casamento, a proposta de largar o emprego, a constatação de não ter feito uma boa escolha. Tentou retornar, o marido não admitiu que fosse para a mesma empresa. E, na verdade, administraria o quê? Trabalharia para os outros? Não. Mulher minha, não. Por fim, Adelaide tentou de tudo para se libertar - Herbalife, Natura, Avon, para conhecer pessoas, ampliar o seu pequeno mundo estacionado no sétimo andar, do Belvedere, 153 m2, 4 quartos, 5 vagas na garagem e vista definitiva quitada. Som de asas e um rastro furando a chuva amarela.
A chuva aumentara, lá embaixo as pessoas ziguezagueavam entre os carros. Buzinas. Um semáfaro estragara. E Adelaide, que há tempo, não via nem chuva, resolveu assistir. Vistoriava cada detalhe. Pequeno acúmulo de água se formava próximos ao meio fio, de cada lado da avenida. Pessoas com trajes esportivos corriam por outros motivos. Esqueceu-se completamente da tristeza e agora era só olhos a contemplar a vida.
E por mais uma vez, o pássaro voltou e pousou na tela. Surpreendente. Estava de novo ali, pousado, sacudindo as penas molhadas de chuva. Pequenas gotas atingiram, em cheio, o rosto de Adelaide. Ela riu, como a mãe ria. Fechou os olhos e sentiu que o pássaro trouxera consigo o cheiro da chuva. E esta, era completa, cheiro, vento e gotas. Adelaide sentiu-se de novo criança, estava no quintal, debaixo do pé de abacate. A mãe encharcada ao seu lado: - Veja filha, ficamos molhadas, ai meu Deus, que cabeça a minha! Adelaide, enrolada em uma toalha era carregada pra dentro de casa.
- Olha mãe, olha como a chuva é bonita.
- É linda, filha. Agora precisamos entrar.
- Espera, espera mãe, deixa eu só falar uma coisa pra chuva...
Faz-se o barulho de chave girando na porta da sala. Adelaide abre os olhos. Sobressalto. É o marido chegando. A porta se abre. Ele entra. Coloca o notebook no aparador. A chave, no chaveiro. Alarga o nó da gravata.
- Adelaide?
Ela não quer responder.
- A de laide...
Não saberia o que falar. Fechou os olhos. Pássaro apertado entre as mãos. Desejou, desejou muito falar para o marido:
- Fala comigo, como a chuva...
Ele a encontrou na área de serviço, muda feito planta em dia de chuva. E dentro dela não tinham palavras, apenas um som de asas e um rastro furando a chuva amarela.



*Nome do texto inspirado na peça representada pela Cia de Teatro Adulto. Escutei a matéria pela Rádio Guarani em um congestionamento enorme por conta da reforma do BH Shopping.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Livros bem baratos na Bienal

Vale a pena dedicar um grande tempo à pesquisa e compra dos livros.

Adélia Carvalho na Bienal


Quem não foi, infelizmente perdeu o bate-papo literário e poético. Mas não se esqueça - a Bienal termina dia 23 às 22 horas.