O pequeno corre do pátio em direção à grande cozinha. As outras crianças batem em revoada na mesma direção. Sentam-se nos bancos compridos. E, lentamente, uma a uma das canecas são preenchidas com café e leite quente. Para comer deve-se escolher pão com manteiga, bolacha ou biscoito de polvilho. Na verdade toda opção é gostosa, mas o menino se contenta com meio pão com manteiga. É suficiente. Almoçou bastante, fizeram o seu prato preferido hoje, purê de abóbora com carne cozida, o que comeu até se fartar com um bom tanto de arroz e feijão preto.
Depois do lanche da tarde terá pouco tempo para brincar. Às cinco horas toca o sino para o jantar. Pretende acabar de construir sua casinha no final do pátio, onde brincam as crianças menores. Sua obra já está quase pronta, é bem provável que termine antes, dos seus pais chegarem para lhe buscar.
O menino procura em qual das mesas está seu amigo. Faz um sinal com as pequenas mãos para que o amigo providencie o término do lanche. Tiago engole a força um pedaço maior de biscoito de polvilho, que desce arranhando a garganta. Os olhos enchem de lágrimas, por conta do sufoco. O menino ri da expressão estranha no rosto do Tiago e o amigo também. Responde o sinal espalmando uma das mãos, como quem diz, espere mais um pouquinho. O menino espera que o amigo termine.
Todas as crianças colocam as mãos postas e agradecem:
- Muito obrigada Menino Jesus pelo alimento que acabamos de comer, que nunca falte em nossa mesa e de nenhuma família.
O menino confere se Tiago está pronto para sair correndo para o pátio. Vê o rosto do amigo que o desafia a chegar primeiro. Todos correm. O menino e Tiago vão sendo pouco a pouco ultrapassados pelas crianças maiores. Um adulto grita:
- Cuidado, assim vão se machucar.
Descem as escadas, ultrapassam o campo de futebol arranjado pelos maiores. Seguem em direção ao extremo do terreno, à direita, onde o muro se encontra em ângulo de 90 graus.
- Rápido Tiago, a gente precisa terminar essa obra hoje.
- E se não der tempo?
- Vai dar, vai dar. É só você fazer o que eu mando. Pega um pouco mais de água, o caneco eu escondi dentro da casa pra ninguém pegar.
Tiago corre até a torneira, de onde sai à mangueira de aguar a horta. Enche o caneco. Retorna para perto da casinha, vai molhando a terra, cavando e misturando, formando um barro mole que entrega ao amigo. O menino aproveita os tijolos restantes da última reforma da grande casa, coloca um sobre o outro, intercala com barro, retira as sobras com a mão.
- A casa tá ficando boa. Vou colocar uma porta aqui.
O menino afasta para que o amigo veja o local exato da futura porta.
- Não tem jeito de fazer isto. O tijolo vai cair daí de cima.
Tiago coloca a mão na cabeça, em um gesto que demonstra total impossibilidade no intento.
- É só a gente colocar um pedaço de pau aqui e ele segura o tijolo de cima.
Responde o menino.
Tiago não entende de onde o amigo tira tantas idéias para as suas construções.
- E desse jeito a gente vai fazer a janela. A gente prega um pedaço de pano e abre e fecha a hora que quiser.
O menino tira o pano do bolso que disfarçadamente conseguiu do quarto de costura. O tecido é vermelho e tem flores amarelas e verdes. Tiago pega o pano e o estende diante de si.
- Eta, é bonito mesmo. A casa pode ser minha e sua?
- Pode.
O menino responde sem perder a concentração sobre sua obra.
- Mas você não disse que vai falar pro seu pai e pra sua mãe que a casinha é sua?
- Disse. Aí eu falo que é sua também, porque você tá me ajudando.
Tiago fica imensamente feliz, com a proposta do amigo. Pensa na cara das crianças mais velhas na hora que verem a casinha. Lembra que trouxe algo escondido também:
- Ah, eu trouxe uma coisa também.
E já vai tirando do bolso do short.
- Você conseguiu mais pano?
- Não. É um pedaço de pão com manteiga. Você qué?
Estende o pão amolecido para o amigo. Que recusa, balançando a cabeça negativamente, como a dizer que isto é desnecessário uma hora daquela.
Tiago tenta limpar o barro que se mistura ao pão. Percebe que a tentativa o torna ainda mais sujo. Mas come assim mesmo.
- Hum tá bom...
Começa a dançar improvisando uma repetição ritmada:
- Tá bão, tá bão, tá bão meu pão!
Os amigos riem. E o menino imita Tiago.
- Tá bão, tá bão, tá bão meu pão! - Tá bão, tá bão, tá bão meu pão!
De repente entendem que estão sendo observados por outras crianças. E como não querem chamar a atenção para a casinha, despistam e retornam ao trabalho.
A construção do telhado foi bem fácil, utilizaram folhas de bananeira. Assim que consideraram a obra terminada, olharam um para o outro, afastaram ao mesmo tempo, para observar a casa de longe. Estava realmente linda. A cortina da janela contrastava com a folha verde da planta e com o vermelho do barro ainda brilhante.
O sino toca. Algo dentro do menino agita, não terá mais tempo de curtir a sua casa recém construída. Está quase na hora dos seus pais chegarem. Olha para Tiago que já demonstra querer subir para o jantar. Corre. O menino vai atrás, ora olha o amigo, ora a casinha que vai se tornando aos poucos menor. Procura uma mesa e um lugar, não antes de lavar as mãos. Senta-se em frente ao prato esmaltado branco. Alguém lhe serve uma sopa com macarrão de letras, abóbora e carne. O menino entende que a sopa foi feita com o resto do almoço. Mas não tem problema, é bom assim mesmo. Enquanto leva as colheradas à boca pensa em sua casinha. Faz planos. Verifica os erros mentalmente e as melhorias que podem ser feitas. Olha para o relógio. Toma uma escolha, a partir de amanhã começará a construir pontes. Observa a colher que conduz à boca. Esta colher tem mais letras A’s que a anterior. E assim fica até a última colherada. Pensa na casa e verifica as vogais na colher, pensa nas pontes e verifica as consoantes.
Acabado o jantar, todos devem se preparar para o banho. O menino se preocupa – quando os seus pais irão chegar para levá-lo para casa? O banho também é bom, morno, sabonete branco com cheiro, faz espuma e limpa o restante de terra que sobrou nos braços. Depois de seco coloca o pijama azul claro parecido com o de Tiago, penteia os cabelos, escova os dentes. Sente as mãos em seu ombro, de alguém que lhe alerta que está na hora de ir para a cama. Deixa-se ser conduzido até o quarto, Tiago segue junto. Deitam-se, cobrem-se com o cobertor listrado. O sono chega de manso com passos de estopa. Ouve a voz do amigo:
- É amanhã que seus pais vêm lhe buscar?
- Eu não sei.
- Mas você não disse que assim que terminasse a casa eles viriam?
- Disse. Mas acho que vai ser assim que eu terminar a ponte. Você me ajuda amanhã?
- Ajudo. Você me convida pra ir a sua casa?
- Convido, Tiago.
A voz de algum adulto diz de longe:
- Silêncio meninos, tá hora de dormir.
Um adulto apaga a luz do dormitório. As crianças voltam a se embriagar de sono. O menino tenta reconhecer os objetos no escuro, através da escassa claridade vinda da lua. Reconhece a cama do Tiago, a fileira de beliches à sua direita. Sente-se confortável. O sono já lhe faz ver coisas. Ainda enxerga o quarto e a cama dos outros meninos, mas também já vê a casinha no fundo do pátio, a colher cheia de letras.
Não lhe falta nada. Nada mesmo. Tem quase tudo que as outras crianças têm. Roupas, comida, adultos, outras crianças, projetos. Em seu sonho começa a andar pelo orfanato. Vê as outras crianças dormindo. Tem quase tudo, só falta uma coisa. Não há nada que una o suco à jarra, a jarra à mesa, não há nada que vela o sonho das outras crianças. Existem apenas coisas e pessoas. Não há nenhum tipo de cola. As mãos do Tiago misturam o barro que une um tijolo ao outro. A sua casinha aparece em seu sonho, um tanto maior que a do pátio, de forma que pode entrar dentro dela. Desce as escadas do refeitório, pára diante da porta, observa a cortina de chitão vermelho balançar na janela. Uma grande colher com macarrão de letras flutua em sua frente. De novo pensa: preciso de um tipo de cola. As letras A’s flutuam, flutuam, aumentam. Lembra da professora dizendo A de amor. Preciso de um tipo de cola. A porta da casinha está próxima. E de repente tudo parece fazer sentido. Vê Tiago descendo as escadas correndo:
- Eles chegaram, eles chegaram.
O coração do menino dispara. A colher flutua cheia de letras que se mexem e se colam. A casinha parece estar viva. Tudo está em silêncio. Suspense. Só cores e cheiros se agitam. Sente o coração maior que o peito a lhe bater nos ouvidos. A porta da casinha se abre, as letras se juntam e tudo se transforma em uma só palavra, que cola todas as coisas e pessoas e o número de dias de espera:
- Filho...
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
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