sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A Capela

Sabe, eu não sou daqui.
A gente finge que é para sobreviver.
Eu tenho essa facilidade:
SOBREVIVO.


Tiraram o seu rosto da água. Buscou o ar, com toda a força dos pulmões, diafragma e vísceras. O ar entrou com dificuldade, insuficiente. O cheiro de alho torrado, jogado em óleo quente, invadiu a capela. Sua cabeça foi empurrada, de novo, para dentro da água. Bolhas. Zumbido nos ouvidos. A água querendo invadir suas narinas. A cabeça latejava.
- Onde está o dinheiro, FILHADAPUTA?
Puxaram mais uma vez sua cabeça. A água escorreu pelo pescoço e peito arfante. Virou o rosto para cima. Olhou para cada um dos três. Sabia que não devia. Nenhum homem mal gosta que os vistoriem por aí. Mas ele era assim - contemplava. Era a sua forma de se afastar da vida. Expectador.
Ainda menino, era o que ficava mais tempo submerso na lagoa da Pampulha. Fazia graça para os vendedores ambulantes. Pipoca, cachorro quente, churros. Era esse o pagamento dado àquele que ficasse mais tempo sem despontar a cabeça da água. Por vezes desmaiara. E talvez, por pena ou compaixão, tinha o seu ganho. Comia. Levava o nome de piaba, girino pelos feitos e cascudos, pontapés dos meninos que não o venciam na água. O que importa? Não importa. Comia a boca grande, sem a necessidade dos dentes. Quem muito mastiga tem a comida roubada. E comida depois que entra na barriga, é só do dono dela. De outras vezes carregava compras, lavava carros, vendia balas, batia carteiras e chupava o vício dos velhos. Sobrevivia.
Desataram os fios que prendiam seus pulsos.
- Quebra os dedos dele.
Alguém segurou os seus braços. Marreta. Estalos. Um urro contido. Pelo menos as mãos foram soltas. Doíam os dedos e os pulsos. Deixou as mãos ficarem coladas sobre o encosto da banheira velha, cocho de bois e vacas.
Fora o quinto filho não desejado. Nasceu na favela, filho de mãe sem pai. Porque pai eram muitos. A mulher que o tivera, livrara-se dele. Colocou-o, sobre farrapos, dentro do guarda roupa sem portas. Improvisou uma, com um lençol velho. Livrara-se. Desceu com a placenta numa sacola plástica do Epa. Sumira. E, ele ficou sem notícias dela, ou de quem era, assim, já no início da vida. Crianças o acharam à noite, depois de invadirem o barraco na esperança de alguma comida esquecida.
- Tem um gato aí no guarda roupa.
Disse a mais nova e magra. E depois desse feito sobreviveu a anemia, pneumonia, dengue, sarampo, rubéola, DST, difteria.
- Se não falar vai ter que rezar...
- Esse aí tem a boca colada.
- Mas aqui todo mundo fala, MANÉ, a piaba vai chorar!
Cheiro de cigarro mentolado, feito a boca da mulata DIVINA. O cigarro pulou de mão em mão. E o seu pensamento variava, ora aqui, ora com a mulata estendida ao seu lado. Os homens descansavam. Confissão cansa.
- E não é, que cê tá ficano bom nisso, minino?
Os dentes alvos da mulher sorriam pra ele. Tinha 11 ou 12 anos, não sabia bem. Afinal, quem lhe contara os primeiros anos? Enquanto estava no orfanato sabia de cabeça a data e o tempo, quando fugia para rua, perdia-se no mundo, no tempo, na vida. Fora e voltara, até não ter mais idade. E daí por diante só a rua, as marquises. A mulata foi a primeira mulher que tivera. Se aquilo foi à força, não podia dizer. Com ela, gostava de ficar, assim, entregue. Ela tinha lá suas preferências, 2 ou 3 meninos da Guaicurus. Dizia que homem depois que cresce não presta. E faz tudo a maneira deles. Gostava das noites que a mulata lhe chamava. Entrava no quarto e ela lhe dava banho. Depois o enchia de cheiros, perfumes baratos, coloridos, lavanda disso e daquilo. Rosa, roxo, azul e amarelo. Vistoriava o seu corpo em busca de alguma evidência de doença. Depois de lavado, cheirado, vistoriado, ela lhe dava carinho. E ensinava-o a tamborilar couro de mulher. Ele obedecia, feito cordeiro. Servil. Aflito. Tonto. O corpo todo em comichão. Formigando. Sentia explodir por dentro. E os gritos da mulher longe, cada vez mais longe. Depois ela o parabenizava e dizia:
- Não vai me esquecer, heim muleque, fui eu que te ensinei a ser homem.
- Num esqueço não DIVINA, você é uma mãe pra mim.
E eles brincavam de mãe e filho. Ela representava. Achegava-se ao guarda roupa e dizia:
- Meu filhinho, voltei, mamãe tá aqui.
E ele sorria e chorava:
- Mamãe louca, mamãe louca, por que demorou tanto?
Daí Divina lhe dava leite, em bons tempos, biscoitos.
Um dos homens se levantou.
- É agora ou nunca, fala ou morre, desgraçado.
Ele continuou mudo. Queria que a Divina estivesse ali. Ela acalmaria com brandura cada um daqueles milicos.
- Calma lá, com o que vai fazer com o infeliz.
O homem o arrancou do chão. Colocou-o de pé. Ele caiu de novo.
- É aí que quer ficar? E aí? Então fica.
O homem avançou feito um possesso sobre ele. Apertou-lhe o pescoço. Sentiu a traquéia colar. Chutaram sua boca. Perdeu os sentidos. Nada lhe doía. Depois agarraram sua cabeça e bateu com ela contra o chão. Uma. Duas. Três vezes. Um estalo seco, oco...
- Quebrou a cabeça dele, PORRA.
O sangue escorria de sua boca, espalhava suavemente pelo chão.
- Que MERDA!
- Deixe esse farrapo aí, larga, larga isso no chão, depois alguém limpa.
- À noite a gente volta aqui e enterra junto com os outros.
- MERDA. Agora esse dinheiro fica pros mortos.
- E morto lá precisa disso?
Os homens saem rindo para o trabalho. Passarão em suas casas, banharão seus corpos, vestirão a farda, despedirão das esposas e dos filhos.
À noite retornarão para a capela. Não encontrarão o corpo. Sangue seco no chão e só.
- Cadê o DESGRAÇADO?
- O sargento deve ter enterrado.
O homem entra com sua farda de três divisas.
- Porque estão olhando pra mim?
- Enterrou o corpo?
- Não...
Os três se olham desconfiados. Quem fez a brincadeira de esconder o corpo?
Ninguém o procurou. Não vistoriaram os móveis velhos escorados, na balbúrdia do local. Retornam para suas casas, esposas e filhos. Jantam. Com a certeza de que o outro armara a brincadeira.
De madrugada uma pequena porta, de um velho guarda roupa se abre. Ele estava lá. Arrastara-se com dificuldade e se camuflara no primeiro esconderijo que vira. Respirou fundo, como quem respira a primeira vez.
Nascera de novo. SOBREVIVERA.

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