sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Chá de folhas amargas para alongar a vida

Aprendi a lidar com o frio tardiamente. E não o sinto, por qualquer ventinho. Recolho as roupas do varal usando uma leve camiseta, enquanto o “termômetro” anuncia 12º , rego as verduras no quintal, desfaço o pequeno acúmulo de gelo das folhas, ainda de camisola, enquanto o dia apenas decola e o vento se encarrega de misturar as folhas da espirradeira com as do pé-de-goiaba e do manacá-de-cheiro. Sei que o meu vizinho pensa, essa mulher é doida, essa mulher é doida, não demora adoecer. Mas não sou doida e nem adoeço, nem mesmo resfrio, e sei bem o por quê.

Meu vizinho, este que mora do lado, sempre esperou a doença, antevê a sufrida desde o início da vida. Marcado por sarampo, icterícia, rubéola, caxumba e outros tantos. Foi competente o suficiente para juntar todas em seu pequeno corpo. Por isso, fez seguro, reserva no banco, para algum tipo de cirurgia que o convênio médico não possa cobrir. Telefones úteis na geladeira, bombeiro, unimed, cardiologista, 191, pneumologista e, outros tantos de números em arial, fonte 12, numa folha A4 cheinha.... Senha do cartão? Deixou com o sobrinho, em caso de necessidade. Fez até um kit hospital, pijama, pente, escova de dente, creme dental, toalha, roupão e pantufa verde, para acalmar os pés e as enfermeiras sempre temperamentais.

Comeu sempre às mesmas horas, respeitando a orientação dos nutricionistas. Chá de folhas amargas, com poder de alongar a vida, logo pela manhã, desjejum completo com frutas e fibras, almoço sempre fresco, do dia, sem conservantes. No final da tarde, caminhada, às mesmas horas, quando o sol já se põe, mas por precaução, uma boa dose de protetor solar 50, mas ele caminha sempre do mesmo lado da calçada, e não vê que o pequeno João cresceu e já saiu de casa, que na última terça feira teve uma correção de formigas-cortadeiras que atacaram a casa da dona Terezinha e lhe custou muitos pés de couve, que as palmas brancas e amarelas continuam nascendo todos os anos. Ao voltar da caminhada, banho morno, escalda pés e para o jantar apenas sopa leve, e de novo o chá de folhas amargas.

E, ele sempre me diz, enquanto rego o jardim, apontado com aqueles dedos finos, coloque uma blusa, um agasalho, cuidado com a pneumonia. Enquanto eu fico pensando, pra quê um nariz tão fino e longo? Se não serve para cheirar nada? E ele continua ralhando até eu escutar o barulho do seu portão sendo aberto e a sua voz sumindo ao entrar em casa: Mulher louca, qualquer dia adoece e ainda me dá trabalho.... E a vozinha dele vai sumindo para dentro da casa, enquanto me distraio com a mangueira a ponto de deixar a água escorrer por minhas pernas e pés. E, eu penso: Esse tipo de frio não mata, o que mata é o frio de dentro, esse que já lhe congela os ossos. Mas não digo. Não por educação, mas para não desperdiçar a alegria do início do dia.

E, não é que de tanto prevenir, antecipando a morte, meu vizinho não a viu sorrateira, entrar pela porta da cozinha e lhe pegar pelos flancos, bebendo o seu chá de folhas amargas? Pronto. Cumpriu a sina. Atingiu seu desejo. Parece até que o vejo dizendo: Viu não falei, por isso me preveni tanto, um dia ela me alcançaria... Não teve tempo de utilizar o helicóptero diferencial oferecido e cobrado pelo convênio médico e nunca utilizado, não teve tempo da empregada ligar, já treinada por ele, para ligar para emergências e dizer: Só estou testando o tempo que gasto para entrar em contato com vocês. Os números dos telefones de urgência ficaram na geladeira, até o carregador do depósito limpar as mãos nele e embolar num canto, o kit para o hospital foi doado para um asilo e a reserva para cirurgia, até hoje paga as viagens para o exterior do sobrinho, que não tem medo da vida.

O vizinho? Coitado, morreu por não se prevenir para a vida. Teve um velório escasso de gente e com sobra de tempo. E, o pior, é que não recebeu visitas no último inverno por conta da gripe suína, não falou ao telefone em dias de chuva, por conta de raios, nunca utilizou a piscina já pronta ao comprar a casa, no fundo da área de lazer desutilizada, por conta dos micróbios, não adoçou o chá de folhas amargas com mel porque doença também gosta de doce, não fez nenhuma das receitas gordurosas da Ana Maria Braga por conta do colesterol ... e morreu.

E eu, às vezes me pergunto, no auge dos meus 98 anos, será que a morte esquece de alguém? Mas o pensamento passa rápido, porque a vida me chama em pluma no alto da espirradeira que já floresce e canta um canto novo, e sei que aquele pássaro é filhote da ninhada do mesmo que esteve por aqui na primavera passada. E continuo a regar as plantas de camiseta, não temo este tipo de frio que a metereologia anuncia, só temo três coisas: não usufruir da minha vida, não curtir as mudanças do dia, e morrer de frio de dentro, deste tipo que ninguém vê, mas pressente, quando lhe apontam o dedo em riste, simplesmente, porque se é só alegria. Tenho medo mesmo, desse tipo de gente.

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