Resolveu ser outro, só por um dia, queria sentir, pensar, viver a verdade dos outros. Não é tão bom um dia após o outro em um escritório de contabilidade, café sempre requentado, ar condicionado estragado e o cheiro de lavanda do desinfetante barato. Precisava de um dia livre. Então, ligou para o trabalho e inventou o adoecimento de uma tia, que não tinha. Foi logo falando pelo telefone que precisava viajar às pressas para o interior. O austero e metódico supervisor mostrou-se solicito, perguntou mundos e fundos. E ele, que queria ser outro, mostrou-se aflito: - Desculpa, senhor Hélio, mas se eu não desligar o telefone agora, perco o ônibus para ...Piranga. Gostou do nome. Se fosse outro, até podia ter nascido lá. E foi tão veemente na pressa, que ouviu do outro lado da linha:
-Desculpa eu, meu filho, vá, vá logo. Olha, cuida bem da sua tia. Estimo as melhoras!
E, não é, que é bom ter uma tia, mesmo que doente? Sentiu um lampejo de compaixão. Um tipo de responsabilidade terna. Um sentimento não tão grande quanto o dedicado a uma mãe, mas um sentimento irmão deste, um amor torto. E já que era outro, tirou a mochila de cima do guarda roupa, sacudiu para que a poeira saísse dela. Jogou lá dentro duas mudas de roupa, pegou uma caneta e as palavras cruzadas, mas desistiu logo, sendo outro, possivelmente não gostaria de fazer palavras cruzadas. Trancou a porta do quarto, fingiu não conhecer os outros hóspedes, deixou a chave na recepção. Saiu. Sentiu o dia morno, que já se anunciava quente. Olhou para os lados. O que faria? Mas, como o que faria? É obvio, vou para Piranga. Desceu até o ponto, não o de costume para ir ao trabalho, buscou o rumo da rodoviária.
Caminhou como quem vai para Piranga, visitar a tia doente. Desceu na Afonso Pena, atravessou a avenida correndo. Tumulto, pessoas indo para o trabalho, o sino da Igreja São José tocou, o semáforo abriu, fumaça do cano de descarga dos ônibus, táxi coletivo parando e saindo. As primeiras horas de um dia sendo outro. O que o aguardava? A vida tinha pressa, flashes, o estudante no ponto de ônibus, o cadeirante na faixa de pedestre, o homem de terno dentro do carro importado, a mulher de saia curta, tantas possibilidades. E ele podia ser todas. Caminhava e girava a cabeça, procurando sentir o que sentiam as pessoas à sua volta. Mistura. Nunca sentira tantos cheiros, tamanha liberdade. Quis sair de si.
Sentiu fome, chegou à rodoviária. Pensou comer alguma coisa antes da viagem. Parou na primeira lanchonete bem próxima à escada rolante, comprou antes um jornal, já que nunca o lia e depois decidiu fazer o mesmo pedido da senhora a sua frente.
- Quero um pão de queijo, café e uma salada de frutas. “Salada de frutas?” Enfim, comeu, até que gostou. Embolou o guardanapo. Pronto. Entrou na fila, comprou sua passagem. Precisava aguardar 45 minutos ainda. E já que não era ninguém, colocou-se a ouvir a conversa de quem estava próximo. Quer lugar melhor para não ser ninguém do que numa rodoviária? Ninguém o conhece, está ali só de passagem e possivelmente ninguém o verá novamente. E foi durante um tempo a mãe com o filho no colo, o homem sóbrio solitário, os rapazes que riam de alguma coisa enquanto fumavam. O tempo passou rápido. O dia era leve.
8:45. Desceu as escadas e foi até a plataforma indicada no bilhete. O ônibus estacionou. Foi o primeiro a entrar, buscou a sua poltrona, 13, colocou a mochila entre as pernas. Não ligou o MP4, quis ver e ouvir outras coisas, outras verdades, deixar de ser quem era. Observava cada um que entrava. Sentou próximo à janela. Quem seria sua companhia de viagem? Uma senhora gorda, de ancas largas, aproximou, vistoriou de perto o número da poltrona. “Não, não, não”. Passou. O homem baixo, de bigode, que usava um terno gasto e sujo, rumou para o fundo do ônibus. “Se eu fosse ele, certamente não teria esposa. Nenhum homem que tem uma, anda assim.” Uma mulher com três crianças, entalou entre as poltronas. “Ai que berreiro, Deus me livre” Deixou cair um pacote na cadeira ao seu lado. – Desculpa! Passou a mão no pacote e nos filhos, continuou pelo corredor. Sentou três poltronas após a sua. Um vendedor de água, gritava, chamou sua atenção para fora. “E se fosse vendedor de água? Que tipo de pensamento teria, o que comeria aos domingos? Quantas mulheres já teria comido?” Sorriu dos próprios pensamentos, surpreendeu-se por ter alguém sentado ao seu lado. Uma moça pequena, cabelos pretos e ralos, olhos grandes, boca pequena, pele clara. Leve feito pássaro recém pousado ali.
- Bom dia!
Não era assim, nunca puxaria conversa, mas como se propôs ser outro...
- Bom dia, ela respondeu quase engolindo as palavras.
Sentiu-se confortável para observar a moça displicentemente. Cara dura. Diante dela e com ela assistindo a tudo. Um voyeur às avessas. Sentiu prazer nisto. Desceu o olhar pelo pescoço a mostra, um pingente em forma de gota e o pequeno decote. O vestido decente, claro, rente ao corpo, até os joelhos. Nenhuma sobra, parece ter sido feito pra ela. “Roupas daquele tamanho não deve ser nada fácil encontrar”. Refez o caminho, calmamente. Encontrou os olhos dela estatelados, interrogativos. “Decerto tenta pensar quem eu sou” Insistiu no olhar. Nunca fizera isto antes. Sentiu-se forte, viril até.
- Está calor, não é mesmo? Ela disse envergonhada. Preferiu não responder, assim o constrangimento dela aumentaria. “Não baixo a guarda e retiro as suas”. Pensou.
- Qual o seu nome?
- Nidinha. Ela respondeu ainda mais aflita, contorcendo o pingente entre os dedos da mão direita. Ele gostou, gostou muito do nome no diminutivo. Quantos nomes poderiam ter aquele apelido. Era uma boa idéia. Um nome que não é o verdadeiro nome. “E o seu?” É claro que esta seria a próxima pergunta. Não conseguia pensar em um nome que não fosse o que tinha. Resolveu não dar tempo para que perguntasse o seu. Seria assim, ela viajaria ao lado de alguém sem nome.
Nidinha olhava para ele aflita, como que pedindo socorro. Puxou a mala que estava no chão, com os pés. Ele se ofereceu para ajudar.
- Quer que eu coloque a bolsa no bagageiro?
- Se não for incômodo.
- Não, não é. “Como assim não, não é?” Riu de si mesmo, ou melhor, riu desse outro. Direto, sem escrúpulos, mas quase cavalheiro. Levantou. Ficou de frente para ela, passou bem devagar. Endireitou a postura para que parecesse mais forte. Ao voltar, deixou suas pernas encostarem nas dela. Não pediu desculpas. Sentou. Levantou o suporte de braço, que dividia as poltronas. Viu que a moça ficou incomodada. A pequena recostou-se procurando por uma melhor posição. Resolveu, ousar um pouco mais. Deu um leve tapinha na perna esquerda da moça:
- Quer ir na janela?
- Não obrigada, não gosto de janela.
Gostou da idéia de não gostar de janela. Camaleou-se:
- Eu também não, mas como não tinha nenhum outro lugar vago...
- Ah..
- Você vai até Piranga, ou desce antes?
-Até Piranga.
-Ah..
Silêncio. Ambos se olharam e do pouco que ele viu gostou. Mas não da moça exatamente. Gostou da idéia de ser outro e poder dizer ou fazer o que bem quisesse.
- Você mora em Piranga?
- Não, estou indo visitar uma tia que adoeceu de repente.
- Puxa, que chato, sinto muito.
- Eu também.
- E é grave?
- Infelizmente sim. Reforçou a entonação ao dizer infelizmente, viu o peito da garota se encher de ar, o pingente subiu e desceu docemente, viu que ela se apiedara dele. Emendou logo:
- É dengue.
- Dengue?
- Hemorrágica... riu por dentro.
- Meu Deus, que horror. Coitada da sua tia.
- Coitada da minha família também. É uma tia muito querida sabe? Mas infelizmente ela e minha mãe brigaram quando eu era bem novo. Mudei de Piranga e nunca mais voltei.
- Nossa, como é triste.
- É de doer. Eu sempre quis conhecer a minha família.
As idéias surgiam aos borbulhões em sua cabeça. Quanto mais atenção a moça lhe dava, mais prazer sentia e mais vontade de contar com detalhes a sua trágica e nova vida. A mãe que fora rejeitada pela família, por ser mãe solteira, ele que não conhecera o pai e que fora criado longe de todos, o pedido da mãe antes de morrer para que procurasse os parentes.
- E sua mãe morreu de quê?
- Leucemia. E desde então eu estou sozinho...
E como verdade acaba sendo o tanto de certeza com que se conta um fato, a verdade de sua nova vida foi surgindo enquanto a viagem prosseguia.
- E você não tem receio sobre como a sua família vai lhe receber?
- Na verdade tenho, mas é tão importante pra minha mãe, ou melhor, era né. E acho que é isso que eu preciso fazer. Conhecer a minha família, defender a imagem da minha mãe. Olha que mãe melhor, eu não podia ter tido.
Cheque mate, estava feito. Nidinha, estava entregue, queria cuidar dele, ofereceu biscoito recheado de chocolate e ele comeu, comeu e detestava chocolate. Mas gostava dessa moça toda dada, crédula, ingênua.
- Você já me contou a sua vida inteira e ...
- Inteirinha. Repetiu olhando-a de cima a baixo.
- E eu nem sei o seu nome.
Pronto. De novo. Agora não tem jeito, preciso ter um novo nome. Resolveu brincar com ela.
- Eu lhe dou um presente se você acertar.
- Como assim, acertar o seu nome? Impossível.
- Não é não. Meu nome é muito comum e todos falam que o meu nome é a minha cara.
Esperou que ela o batizasse.
- Olha, não vai rir de mim heim, eu acho que é João.
- João? Tentou se imaginar João, gostou. Nome simples, comum, forte.
- Não falei que ia acertar?
-Você está brincando...Não acredito que é isso mesmo.
- Quer que eu lhe mostre meu RG?
- Não, claro que não. Respondeu sorrindo. É que é difícil de acreditar.
“Ótimo.Mas é claro que você acreditaria.” Afinal se vê sempre aquilo que se acredita.
- Pois acredite, minha mãe escolheu esse nome em homenagem ao meu avô. Adorou a sua própria resposta e ainda aumentou sua família com mais um membro. Se continuasse assim até o final da viagem teria uma família enorme.
- Qual é o nome da sua tia?
- Nenêga.
E quem não tem uma parenta chamada nenêga? E além do que, era a forma camaleônica de nome que é, e não é.
- Nenêga. Ela repetiu. Eu conheço pelo menos dez nenêga em Piranga.
Sentiu o perigo, ela farejava, buscava mais respostas que ele não tivera tempo para pensar.
- Onde ela mora?
“Ai, merda”
- Não sei bem, ela está no hospital, vou visitá-la.
Ele precisava freiá-la. Caso contrário poderia ser descoberto e a viagem seria desagradável, quando mal iniciava seu único dia de uma nova vida. Pegou o pingente da moça. Segurou-o entre os dedos. Fingiu interesse pela bijuteria. A moça assustou-se com seu comportamento.
- Bem, até agora estou só eu falando de mim, fale um pouquinho de você...
Soltou o pingente, deixou Nidinha livre para falar de si. Árvores, carros passando, a paisagem já modificara, distante do centro de BH, longe de quem era. À medida que o ônibus seguia, camaleonizava. Feito a paisagem de fora. O tom de terra vermelha, vindo das mineradoras, cobria toda a BR e as plantas. Sentia-se mais ele mesmo, por mais estranho que fosse. Era plástico, elástico, flexível, mutante. Cada vez que Nidinha terminava um assunto ele arrumava uma forma de aproximar dela. De tal jeito que ela já não fazia interrupções, de um assunto pulava para outro, contava detalhes da cidade e dela mesma ininterruptamente.
Parada para lanche, em Lafaiete. Desceu primeiro, ela disse que viria depois. “Que seja, assim posso pensar mais algumas coisas”. Resolveu seguir o primeiro passageiro à sua frente, que também saia pelo corredor. Era o homem de bigode e terno gasto. Sentou próximo à sua mesa, atentou o ouvido para poder fazer o mesmo pedido.
- Uma dose de conhaque. Bebeu à mesma maneira, de um gole só. Enquanto esperava o seu pedido, bebeu a segunda dose. “Que merda, escolho logo um alcoólatra”. Não tinha o costume sendo o outro de antes, de beber, mas na sua vida nova, como João bebia e adorava conhaque. Chegou seu pedido: Uma lasca de torresmo, peludo, gordurento. Sentiu náusea. Mas precisava esquecer antigos hábitos. “E não é que é bom?” A gordura envolveu sua boca, escorreu no canto direito. Limpou com o canto do braço. Sentiu-se leve, já fazia planos de mais um dia sendo João. Emendaria logo a sexta feira e retornaria na segunda para o trabalho. Até lá, veria que rumo daria a doença da tia. “O quê, mais um conhaque?” Bebeu o terceiro, levantou, foi ao banheiro. Usou o mictório, lavou a boca e o rosto. Procurou papel toalha para secar as mãos. Não encontrou, secou-as na calça mesmo. Viu-se no espelho, quase não se reconheceu. Gostava de ser João, tinha uma tia doente, não gostava de janelas, nem palavras cruzadas, adorava biscoitos de chocolate, achava torresmo irresistível e era alcoólatra.
Sentiu vertigens. Voltou para o ônibus, lembrou que não inventara nenhuma história, mas já nem conseguia. Queria dormir. Nidinha não estava na poltrona. Sentou próximo à janela fechou os olhos, sonolento. Não tinha vontade de conversar, precisava dormir. O ônibus chacoalhou ao ser ligado, seu estômago revirou um pouco, o sonho era insuportável, as pálpebras eram forçadas para baixo. Dormiu. Dormiu todo restante da viagem.
Acordou atordoado. O ônibus estava parado. Escutou Nidinha falando:
- Coitado.
Outra voz de mulher dizia:
- Dengue hemorrágica? Meu Deus...
Sonhava, ou Nidinha falava com ele enquanto dormia? Olhou para fora do ônibus. Algumas pessoas andavam na plataforma carregando bagagens. O motorista e o trocador estavam lá fora. “Alguma parada ou já era Piranga?” Sentia-se tonto, enjoado. Olhou para o lado, procurando por Nidinha. A poltrona estava vazia. Algumas pessoas estavam de pé no corredor, todas olhavam para ele, como quem assiste a um filme. Não reconheceu ninguém, como sendo passageiro do ônibus. Um senhor grisalho disse:
-Ele acordou.
Parecia que sua nova vida estava sendo narrada. Ouviu uma outra voz:
- Nidinha, ele acordou.
Nidinha surgiu do meio do grupo, estacionado no corredor. Ela aproximou dele com os olhos marejados.
- Nidinha? Você está chorando?
- João, qual é o nome da sua tia Nenêga?
- O quê?
- Não sabia o que responder assim pego de surpresa.
- João a sua tia chama Efigênia?
- É...a minha tia chama Efigênia.
- Nossa, que triste... ecoou em cada boca do grupo.
- Ai meu Deus. Nidinha disse, levando a mão ao pingente.
Não conseguia entender o que acontecia.
- Chegamos em Piranga?
- Chegamos, calma João, tente ficar calmo.
- Eu estou calmo, só bebi um pouco, você sabe, estou um pouco nervoso por causa daquela história que eu lhe contei.
- Sim, claro.
Olhar de compreensão. Ele pode quase jurar que viu aprovação dela, por ter bebido.
- Só bebendo mesmo...
- João...
- O quê, o quê está acontecendo Nidinha?
- Eu não tenho uma boa notícia.
- Como assim?
- João, esse aqui é o meu pai, a minha tia, meus primos...
“Ai minha santa paciência, deixa eu sair logo daqui, já nem sei se quero ser João”.
- Eles vieram me buscar aqui na rodoviária. Daí entendi o que aconteceu.
“Puta merda, ela entendeu a minha mentira e já vai a forra”.
- É que a Efigênia, que é nossa vizinha, estava no hospital com dengue hemorrágica, eu não sabia...
- O quê?
- É, a sua tia Nenêga é nossa vizinha.
-É?
- Ela morreu João, agora pela manhã. Sinto muito.
- ....
João pegou sua mochila entre as pernas. Tentou ficar de pé. Bateu a cabeça no bagageiro. Que dor insuportável. Os olhos molharam de lágrimas. Continuava escutando os narradores de sua nova história:
- Coitado, mal conheceu a tia e está tão sentido.
- Agora, ta órfão de tudo.
“Puta merda, mal sou outro e já perco um parente.”
A cada passo no corredor apertado recebia um abraço e um sinto muito de algum parente da Nidinha.
- Coragem meu filho!
- Deus quis assim.
- A Efigênia dizia mesmo de um sobrinho que nunca mais viu. Ela esperava por você, sabia?
Do corredor apertado do ônibus, seguira outro ainda maior. A notícia pela cidade de Piranga, curiosos, café na casa dos parentes, a casa vazia da tia adotada, velório e enterro. Fausto nunca mais voltou para a pousada em Belo Horizonte. Ou melhor, João nem mais se lembrava que um dia fora Fausto. Já não era, era outro.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
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