quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Primeira Vez

A infância é o verdadeiro tempo
e a gente só envelhece para saber
É para lá que a gente retorna quando morre
O céu é habitar na gente mesmo, pequeno

Antônio ficara deitado no chão a tarde inteira. O sol amainara e ele apenas estalava mato verde na boca. Sem dor, o corpo solto, as pernas leves, só a cabeça pesava. E pesava, por não entender mais quem era Ana, quem era João. Se não tivesse descido ao terreiro, naquele exato momento, nada dentro dele teria mudado. E estaria uma hora dessas correndo na rua, puxando o fio, o fio levando a pipa, a pipa alçando o céu, e o céu seria todo dele e dos amigos. Esta era a constatação exata do menino, que para certos acontecimentos, não se deve existir.
Horas antes, caíra ali na grama, tonto, absorto, pesado. Um mal estar tremendo conduzira-o a um torpor. Dormira e sonhara que a grama o escondia dos adultos, que pequenas mudas o envolviam feito um cobertor verde musgo. Depois sentira pequenas alfinetadas pelo corpo, enquanto o céu descia do teto e comprimia-lhe o peito. Acordou aflito, sem ar. Pequenas formigas vermelhas passeavam por suas pálpebras e cantos da boca. Temeu ser descoberto. Tremeu por dentro. Quis chamar a Maria, mas isto não era coisa para meninas. E se não era, porque Ana fizera aquilo?
A tarde chegara ao fim. Escutou Maria chamando o seu nome:
- Antônio, Antônio, Antônio...
Levantou resolvido não contar nada do que vira para os adultos. Mas estava partido, lascado, sem tamanho, sem rumo. Ainda ouvia o farfalhar das folhas secas. As frases sussurradas na orelha de Ana. As mãos ágeis do João, borboleteando o corpo dela.
Entrou na casa. Alvoroço. Adultos rindo, falando alto. Parentes e convidados sentados por todos os lados. Enquanto ele, aparente pequeno menino se adivinhava pelos cômodos. Alguém passara a mão em seus cabelos. Antônio sentiu um calafrio. E nunca sentira frio assim. Era Ana, que lhe afagava o cabelo como sempre.
- Não.
Gritou.
As pessoas pararam para olhar de onde iniciara o grito. O pequeno Antônio no centro da sala segurava a mão da bela Ana estendida sobre sua cabeça.
- O que foi meu pequeno? Não é mais o meu príncipe?
Antônio olhava furioso para Ana. E já não a achava tão bonita. Quando se é criança, as pessoas são mais bonitas, mesmo as feias. E Ana já não era bela para ele. E ele já nem era.
A mãe preocupada acudiu logo a convidada.
- Mas o que é isso, Antônio gosta tanto de você. Antônio porque fala assim com a Ana? Olha que ela não se casa mais com você, heim?
O menino sentiu o peito arder. O coração batia ligeiro, feito pássaro contido nas mãos. Teve asco das mãos brancas dela. Queria que todos os adultos da sala se dissolvessem. Olhou para os olhos perplexos da Ana e viu a feiúra dos seus olhos claros, os dentes brancos, a boca estranhamente vermelha. Acendeu-lhe uma pequena chama de fúria, mínima fagulha em mato seco. A boca de Ana não podia...não devia...Não escutava as palavras que saiam dela. Antônio sentiu as lágrimas chegarem aos olhos. Mas ele não choraria. A boca seca, o coração vazio...
- Você não gosta mais da Ana, Toninho?
- ....
- Antônio, Antônio.
De novo Maria o chama do canto da sala, perturbada pela braveza do amigo.
Antônio se sente salvo. Vira as costas para sua antiga forma de menino. Deixa Ana surpresa, deixa o casamento com festa de pirulitos, os cabelos soltos da noiva, seus dentes brancos, os olhos cor de mel...
Avança pela sala, segura a mão de Maria.
- Quer brincar de pique-bandeira, Tonho?
O menino não responde. Descem juntos, a escada que dá para o jardim em frente à casa.
- Não Maria, eu não quero mais brincar.
- E vai fazer o que, sozinho na escada?
- Nada Maria, eu só quero olhar.
Os meninos corriam, as faces coradas, gritos e assovios. Maria entre eles destoava um pouco da mesma Maria do início do dia. Os cabelos anelados ficaram esvoaçantes, o vestido xadrez e fofo a deixava ainda mais menina. Por um momento estacou no meio do grupo, olhou para cima, descobriu Antônio na escada, fez um gesto para o amigo. Ele não respondeu, pela primeira vez, não viu sentido na correria dos amigos.
Sentou na escada. Postou o braço sobre as pernas. Lá embaixo as crianças continuaram correndo, na casa acima, os adultos bebiam e riam alto. Antônio, em silêncio, se avessava sozinho. Não cabia em nenhum dos dois mundos, nem dos adultos, nem das crianças. Olhou para o céu vestido de noite. Nunca o céu lhe pareceu tão distante, tão bonito e tão triste.

Amor


"...não muito longe daqui, onde habitam sonhos loucos, de asas grandes e pernas finas, existe uma flor. Delicada de forma e perfume, de nome absurdamente comprometedor: Flor de não me esquece...Contam que, aquele que a encontra e aspira, por um segundo que seja, não mais se esquece de quem pensar no momento. Aspira-lhe o cheiro da flor, a alma e a essência de quem se pensa. E lembra do que é de dentro, daquilo que realmente importa".

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Sempre Um Papo



Em 2009 foi entrevistada no programa Sempre Um Papo, junto com mais dois escritores de Itabirito Jarbas e José Pires. A conversa percorreu vários caminhos sobre o processo criativo. Como ocorre, o recurso da técnica como auxílio e a inspiração necessária para criar. Tânia descreveu a importância de buscar conhecer muitas palavras, o seu significado, a importância da sonoridade do texto.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Roupa no varal

Bendita chuva que cai do céu,
teto do mundo, chão de Deus.

Vento fino levantando poeira. Janelas batendo, Maria correndo. Voa folha, voa formiga, voam as pernas da calça rosa da Margarida, entrelaçam nas pernas da calça xadrez do Ovídio. Quintal. A hera verde musgo enlaça o muro, o calango agarra o chapisco e os galhos. O dia geme, o vento agita, os galhos das árvores retorcem.
Bate uma, duas, três portas. Alguém grita:
- Feche as janelas.
Maria continua correndo. Carrega a cadeira que seca tinta nova amarela no quintal. Retorna com o balde verde, grande, arranca as roupas do varal. Caem pregadores que vão um a um se amontoando no chão, escondendo entre as folhas secas, entre a grama e os resíduos do quintal.
O cão também corre na esperança de uma meia, ou perna de calça restante, para saborear e cheirar durante a noite.
O vento aumenta. Poeira nos olhos. Esfrega, esfrega, arde.
- Alguém quer fechar esta porta, por favor...
O grito do homem velho vem de dentro do quarto escuro. Maria retorna com o balde verde vazio. Sem três meias que já estão na casa do Krug, o cão; que acha que Maria brinca com ele. Pula, ladra, abana o rabo, as pulgas se agitam e voam, voam.
Joana dentro da casa fecha as janelas lentamente, o vento corre em volta dela, Joana arrasta a pouca vontade de um lado para outro. O vento ligeiro antecede à Joana e bate a aba de outra janela. Joana suspira. O vento amontoa num canto atrás das roupas colhidas no varal, esconde, encolhe e retorna por outra porta.
O dia muda, transforma, dança e dentro de Joana voam os pensamentos e estagna uma pequena fração de ar que se acumula nublando o céu do seu peito. Tempo carregado que antecede tempestade. Soubera a poucos dias que engravidara. Semente caída na terra, esquecida, pequena raiz insistente fundindo ao chão de dentro dela.
Maria entra na sala:
- Vem Joana, me ajuda, ou a chuva chega antes e molha toda a roupa.
A recente gestante não preocupa se a roupa se manterá seca ou molhada, se o velho doente estará exposto ao vento, se o dia lá fora se agita ou se acalma, se formigas...quanto a essas, ela nem mesma sabe que continuam existindo.
O namorado dissera que a amava acima de tudo e todos. Que um dia se casariam e teriam muitos filhos, que lhe daria uma casa bem linda,com quintal e jardim; e nunca,mas nunca mesmo trabalharia cuidando da casa de mais ninguém. Gravidez comprovada, namorado perdido.
Joana sabe que não mais encontrará o seu rastro, e que o filho que carrega não se perderá por nenhum tipo de mal súbito. Já sente a força dentro do ventre, chega a sentir uma pequena alminha que o habita.
Joana, só não sabe, que bem mais tarde em um outro dia de vento, a criança, seu filho correrá pelo quintal, recolherá as roupas e a cadeira camaleônica recém pintada de laranja, o pequeno correrá diante dela e atiçará o velho Krug, que já não gosta de brincadeira. O homem velho, seu patrão, antes rabujento, será o único a apoiar a sua gestação, que o fará sem nenhum comentário ou cobrança, e o menino será simplesmente a alegria dos seus últimos dias. Luz dos seus olhos.
O pequeno correrá em direção ao quintal com seu short marrom gritando:
- Corre mãezinha, antes que a chuva molhe a roupa.
E Joana não gostará que a chuva molhe a roupa lavada com tanto zelo, achará bonito o filho recolhê-la, poupando-lhe o trabalho, cuidando dela. E dentro dela nada estará pesado, o dia será leve e calmo, morno e terno. Lembrará da promessa de uma casa com jardim e quintal. Sentará no degrau da porta da cozinha, as roupas já dentro, protegidas da chuva. Esperará a chuva cair do céu, teto do mundo, chão de Deus. Entenderá que a vida tem uma forma avessa de costurar o tempo. O filho sentará em seu colo.
- Mãezinha, a chuva demora?
- Não filhinho, nada demora, nem mesmo a chuva, tudo tem seu tempo.
A mãe beijará o rosto do filho:
- Um beijo e um pedaço de queijo.
- Cadê o queijo mãezinha?
Joana sorrirá e abraçará o filho, broto verde do mundo, planta viçosa, perfeita, central de um jardim.
E os dias continuarão feitos de vento, formigas voando, cadeiras que mudam de cor, pessoas indo, filhos vindo, gente mudando e roupas secando no varal.

Arco íris






A mãe, na cozinha, lava os pratos. Flores azuis, listras rosas, quadrados verdes, ou totalmente brancos. Aquelas variações de pratos que restam dos que se quebram. A filha sentada à mesa, cabeça suspensa pelos braços, balança as pernas cruzadas, de cima da cadeira alta de madeira. Ora olha a mãe, ora a janela, um pouco aberta. Do pequeno espaço azul do céu, vê-se o desfile lento de algumas nuvens.
- Mãe, passou uma agora; parece um coelho gigante, agora um sapo...
A mãe imita um coaxar. A filha sorri. A mão de mãe ensaboa, lava, transforma coisas pegajosas em livres. A gordura escoa pelo cano. Estende o pano de prato à filha que, vagarosamente, recolhe os pratos do escorredor e seca-os. Empilha-os. Observa a mãe. “Tão bonita. Vou ser assim quando crescer?” O vestido que usa, assim solto, fino e colorido, parece com o da mãe. Um pouco rosa, um pouco azul, um pouco branco. Arrasta a borda no chão, pela insistência da filha de usá-lo sem bainha; na espera de perceber o próprio crescimento aos poucos. E vê-lo atingir a canela, a batata da perna, os joelhos. “Vou saber com certeza, que já sou grande”.
O fogão parece agora estar vestido de sabão. Pensa a filha.
- Que carinha risonha é esta? A mãe pergunta.
- Mãe, pro carnaval você faz pra mim uma roupa de espuma?
- Para você deslizar na passarela?
- Não. Pra você passar a mão em mim.
As duas riem. Encontro da ironia do desejo de crescer com a essência do sonho irrefutável de criança, quando tudo é possível. Assim, da mesma forma que se pode costurar água e sabão e dar forma à fantasia.
A menina olha de novo à janela: as cores da nuvens mudaram. “Por que tudo muda? As cores e formatos das nuvens?”
- Aquela com formato de elefante, também tem células?
A mãe, gentilmente, coloca uma pequena bola de espuma no nariz da filha.
- Não, minha filha, tem água, muito vaporzinho d’água. Parece um pouco com a espuma neste narizinho.
- E nuvem coça feito espuma?
A mãe, em meio a seu próprio sorriso, pensa: “Como as idéias fermentam nesta cabecinha”. A filha, um pouco indignada com o sorriso da mãe, pergunta o que disse de engraçado.
- Nada, minha filha. Só acho que não precisa tanta pressa para entender o mundo. Venha cá.
Senta-se, coloca a filha no colo, enquanto diz:
- Um dia, quando o seu vestido estiver mais ou menos aqui na altura da sua coxa, você vai saber o porquê. A vida muda, porque faz parte dela mudar. Você não quer tanto crescer? Existem coisas de todos os tamanhos, algumas grandes, de um tamanhão imenso, e outras pequenas, bem menores que as pequenas que você conhece.
- Igual célula de formiga?
- É mais ou menos.
- Aí, você falou de novo aquilo que não é nem uma coisa nem outra. Me fala, com certeza, qual é a maior coisa do mundo. De verdade.
- A maior coisa que pode haver no mundo é o que cada pessoa traz dentro dela mesma. Chama-se sentimento.
- Parece cimento!
A filha enrola no dedo o cabelo da mãe. Solta o cacho, cai liso em sua mão.
- É mais forte que cimento.
- Maior que um dinossauro?
- É.
- Maior que um nimbo?
- Também.
- Maior que três planetas?
- Muito maior. A mãe reflete um pouco aponta para o céu e diz:
- É maior que o infinito.
- Nossa... e como cabe aqui tudo dentro da gente?
- Coração de gente é maior que o próprio tamanho. Quanto mais amor se coloca, mais cabe. Assim feito o amor de uma mãe por uma filha infinitamente perguntadeira. É como uma casa muito grande com muitos cômodos.
- Com muitas portas?
- Sim.
- Em quantas portas tem o meu nome?
- Em todas.
- Gostei. Gosto desta palavra: todas.
- E quais são as outras palavras que esta filhinha tanto gosta?
A mãe abraça e balança a filha em seu colo.
- Tudo, céu, balanço, paralelepípedo, amora e cimento. Ah. Não...esqueci.
Leva o dedo a boca enquanto lembra:
- Sentimento infinito.
A mãe olha para fora. Começam a cair os primeiros pingos de um sol com chuva, do tipo arco-íris à vista. Improvisadamente convida a filha:
- Vamos andar na chuva?
A filha não entende. Já que chuva resfria.
- Vamos filha, tire o chinelo.
“Mamãe deve estar doida.”
Mas o convite é tão surpreendentemente tresloucado e travesso que a filha permite. A chuva desce já a ladeira, formando enxurradas dos lados, barquinhos de papel sem almirantes descem tortuosamente a rua. A mão grande da mãe se oferece a da filha. A música “dançando na chuva” não existe. Apenas o riso de mãe e filha girando, girando em companhia. Mãos dadas, pés descalços, água fria.
- Sol e chuva, casamento de viúva, chuva e sol, casamento de espanhol.
- Mamãe, quem casa hoje, viúva ou espanhol?
- Não sei, minha filha.
Algumas pessoas passam aflitas e não conseguem imaginar o motivo de tanto riso.O motivo é tão simples. Tão claro feito folha verde de banho de água do céu. É um dia sem mais nem menos, sem comemoração, sem quê nem porquê. O arco-íris já se faz enfeite no céu. São mãe e filha rindo com o singelo da vida, pés na água fria, balé de pernas girando, entrelaçando-se, mãos segurando a quem ama. Comemoram sem nenhum preparo de festa. São mãe e filha.
A filha sempre girando, volta sua cabeça para o céu, caem pequenas gotas de chuva em seu rosto. Sente o coração batendo forte no peito. Fecha os olhos para impedir a água da chuva, mas continua vendo a mãe. Começa a ficar tonta, enquanto imagina a mãe vestida de nuvem....é um cimento infinito....pensa....gira...

Premiação recebida em Piracicaba - SP em março de 2008