Roupa no varal
Bendita chuva que cai do céu,
teto do mundo, chão de Deus.
Vento fino levantando poeira. Janelas batendo, Maria correndo. Voa folha, voa formiga, voam as pernas da calça rosa da Margarida, entrelaçam nas pernas da calça xadrez do Ovídio. Quintal. A hera verde musgo enlaça o muro, o calango agarra o chapisco e os galhos. O dia geme, o vento agita, os galhos das árvores retorcem.
Bate uma, duas, três portas. Alguém grita:
- Feche as janelas.
Maria continua correndo. Carrega a cadeira que seca tinta nova amarela no quintal. Retorna com o balde verde, grande, arranca as roupas do varal. Caem pregadores que vão um a um se amontoando no chão, escondendo entre as folhas secas, entre a grama e os resíduos do quintal.
O cão também corre na esperança de uma meia, ou perna de calça restante, para saborear e cheirar durante a noite.
O vento aumenta. Poeira nos olhos. Esfrega, esfrega, arde.
- Alguém quer fechar esta porta, por favor...
O grito do homem velho vem de dentro do quarto escuro. Maria retorna com o balde verde vazio. Sem três meias que já estão na casa do Krug, o cão; que acha que Maria brinca com ele. Pula, ladra, abana o rabo, as pulgas se agitam e voam, voam.
Joana dentro da casa fecha as janelas lentamente, o vento corre em volta dela, Joana arrasta a pouca vontade de um lado para outro. O vento ligeiro antecede à Joana e bate a aba de outra janela. Joana suspira. O vento amontoa num canto atrás das roupas colhidas no varal, esconde, encolhe e retorna por outra porta.
O dia muda, transforma, dança e dentro de Joana voam os pensamentos e estagna uma pequena fração de ar que se acumula nublando o céu do seu peito. Tempo carregado que antecede tempestade. Soubera a poucos dias que engravidara. Semente caída na terra, esquecida, pequena raiz insistente fundindo ao chão de dentro dela.
Maria entra na sala:
- Vem Joana, me ajuda, ou a chuva chega antes e molha toda a roupa.
A recente gestante não preocupa se a roupa se manterá seca ou molhada, se o velho doente estará exposto ao vento, se o dia lá fora se agita ou se acalma, se formigas...quanto a essas, ela nem mesma sabe que continuam existindo.
O namorado dissera que a amava acima de tudo e todos. Que um dia se casariam e teriam muitos filhos, que lhe daria uma casa bem linda,com quintal e jardim; e nunca,mas nunca mesmo trabalharia cuidando da casa de mais ninguém. Gravidez comprovada, namorado perdido.
Joana sabe que não mais encontrará o seu rastro, e que o filho que carrega não se perderá por nenhum tipo de mal súbito. Já sente a força dentro do ventre, chega a sentir uma pequena alminha que o habita.
Joana, só não sabe, que bem mais tarde em um outro dia de vento, a criança, seu filho correrá pelo quintal, recolherá as roupas e a cadeira camaleônica recém pintada de laranja, o pequeno correrá diante dela e atiçará o velho Krug, que já não gosta de brincadeira. O homem velho, seu patrão, antes rabujento, será o único a apoiar a sua gestação, que o fará sem nenhum comentário ou cobrança, e o menino será simplesmente a alegria dos seus últimos dias. Luz dos seus olhos.
O pequeno correrá em direção ao quintal com seu short marrom gritando:
- Corre mãezinha, antes que a chuva molhe a roupa.
E Joana não gostará que a chuva molhe a roupa lavada com tanto zelo, achará bonito o filho recolhê-la, poupando-lhe o trabalho, cuidando dela. E dentro dela nada estará pesado, o dia será leve e calmo, morno e terno. Lembrará da promessa de uma casa com jardim e quintal. Sentará no degrau da porta da cozinha, as roupas já dentro, protegidas da chuva. Esperará a chuva cair do céu, teto do mundo, chão de Deus. Entenderá que a vida tem uma forma avessa de costurar o tempo. O filho sentará em seu colo.
- Mãezinha, a chuva demora?
- Não filhinho, nada demora, nem mesmo a chuva, tudo tem seu tempo.
A mãe beijará o rosto do filho:
- Um beijo e um pedaço de queijo.
- Cadê o queijo mãezinha?
Joana sorrirá e abraçará o filho, broto verde do mundo, planta viçosa, perfeita, central de um jardim.
E os dias continuarão feitos de vento, formigas voando, cadeiras que mudam de cor, pessoas indo, filhos vindo, gente mudando e roupas secando no varal.
Tudo tem seu tempo, certeiro e perfeito.
ResponderExcluirBeijos.