segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Arco íris






A mãe, na cozinha, lava os pratos. Flores azuis, listras rosas, quadrados verdes, ou totalmente brancos. Aquelas variações de pratos que restam dos que se quebram. A filha sentada à mesa, cabeça suspensa pelos braços, balança as pernas cruzadas, de cima da cadeira alta de madeira. Ora olha a mãe, ora a janela, um pouco aberta. Do pequeno espaço azul do céu, vê-se o desfile lento de algumas nuvens.
- Mãe, passou uma agora; parece um coelho gigante, agora um sapo...
A mãe imita um coaxar. A filha sorri. A mão de mãe ensaboa, lava, transforma coisas pegajosas em livres. A gordura escoa pelo cano. Estende o pano de prato à filha que, vagarosamente, recolhe os pratos do escorredor e seca-os. Empilha-os. Observa a mãe. “Tão bonita. Vou ser assim quando crescer?” O vestido que usa, assim solto, fino e colorido, parece com o da mãe. Um pouco rosa, um pouco azul, um pouco branco. Arrasta a borda no chão, pela insistência da filha de usá-lo sem bainha; na espera de perceber o próprio crescimento aos poucos. E vê-lo atingir a canela, a batata da perna, os joelhos. “Vou saber com certeza, que já sou grande”.
O fogão parece agora estar vestido de sabão. Pensa a filha.
- Que carinha risonha é esta? A mãe pergunta.
- Mãe, pro carnaval você faz pra mim uma roupa de espuma?
- Para você deslizar na passarela?
- Não. Pra você passar a mão em mim.
As duas riem. Encontro da ironia do desejo de crescer com a essência do sonho irrefutável de criança, quando tudo é possível. Assim, da mesma forma que se pode costurar água e sabão e dar forma à fantasia.
A menina olha de novo à janela: as cores da nuvens mudaram. “Por que tudo muda? As cores e formatos das nuvens?”
- Aquela com formato de elefante, também tem células?
A mãe, gentilmente, coloca uma pequena bola de espuma no nariz da filha.
- Não, minha filha, tem água, muito vaporzinho d’água. Parece um pouco com a espuma neste narizinho.
- E nuvem coça feito espuma?
A mãe, em meio a seu próprio sorriso, pensa: “Como as idéias fermentam nesta cabecinha”. A filha, um pouco indignada com o sorriso da mãe, pergunta o que disse de engraçado.
- Nada, minha filha. Só acho que não precisa tanta pressa para entender o mundo. Venha cá.
Senta-se, coloca a filha no colo, enquanto diz:
- Um dia, quando o seu vestido estiver mais ou menos aqui na altura da sua coxa, você vai saber o porquê. A vida muda, porque faz parte dela mudar. Você não quer tanto crescer? Existem coisas de todos os tamanhos, algumas grandes, de um tamanhão imenso, e outras pequenas, bem menores que as pequenas que você conhece.
- Igual célula de formiga?
- É mais ou menos.
- Aí, você falou de novo aquilo que não é nem uma coisa nem outra. Me fala, com certeza, qual é a maior coisa do mundo. De verdade.
- A maior coisa que pode haver no mundo é o que cada pessoa traz dentro dela mesma. Chama-se sentimento.
- Parece cimento!
A filha enrola no dedo o cabelo da mãe. Solta o cacho, cai liso em sua mão.
- É mais forte que cimento.
- Maior que um dinossauro?
- É.
- Maior que um nimbo?
- Também.
- Maior que três planetas?
- Muito maior. A mãe reflete um pouco aponta para o céu e diz:
- É maior que o infinito.
- Nossa... e como cabe aqui tudo dentro da gente?
- Coração de gente é maior que o próprio tamanho. Quanto mais amor se coloca, mais cabe. Assim feito o amor de uma mãe por uma filha infinitamente perguntadeira. É como uma casa muito grande com muitos cômodos.
- Com muitas portas?
- Sim.
- Em quantas portas tem o meu nome?
- Em todas.
- Gostei. Gosto desta palavra: todas.
- E quais são as outras palavras que esta filhinha tanto gosta?
A mãe abraça e balança a filha em seu colo.
- Tudo, céu, balanço, paralelepípedo, amora e cimento. Ah. Não...esqueci.
Leva o dedo a boca enquanto lembra:
- Sentimento infinito.
A mãe olha para fora. Começam a cair os primeiros pingos de um sol com chuva, do tipo arco-íris à vista. Improvisadamente convida a filha:
- Vamos andar na chuva?
A filha não entende. Já que chuva resfria.
- Vamos filha, tire o chinelo.
“Mamãe deve estar doida.”
Mas o convite é tão surpreendentemente tresloucado e travesso que a filha permite. A chuva desce já a ladeira, formando enxurradas dos lados, barquinhos de papel sem almirantes descem tortuosamente a rua. A mão grande da mãe se oferece a da filha. A música “dançando na chuva” não existe. Apenas o riso de mãe e filha girando, girando em companhia. Mãos dadas, pés descalços, água fria.
- Sol e chuva, casamento de viúva, chuva e sol, casamento de espanhol.
- Mamãe, quem casa hoje, viúva ou espanhol?
- Não sei, minha filha.
Algumas pessoas passam aflitas e não conseguem imaginar o motivo de tanto riso.O motivo é tão simples. Tão claro feito folha verde de banho de água do céu. É um dia sem mais nem menos, sem comemoração, sem quê nem porquê. O arco-íris já se faz enfeite no céu. São mãe e filha rindo com o singelo da vida, pés na água fria, balé de pernas girando, entrelaçando-se, mãos segurando a quem ama. Comemoram sem nenhum preparo de festa. São mãe e filha.
A filha sempre girando, volta sua cabeça para o céu, caem pequenas gotas de chuva em seu rosto. Sente o coração batendo forte no peito. Fecha os olhos para impedir a água da chuva, mas continua vendo a mãe. Começa a ficar tonta, enquanto imagina a mãe vestida de nuvem....é um cimento infinito....pensa....gira...

Premiação recebida em Piracicaba - SP em março de 2008

4 comentários:

  1. nossa.. adoro esse conto, ele é lindo.
    to adorando seu blog tânia.. ;) beijo.

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  2. Amiga, a forma que você expressa nos seus contos é ímpar, tem a sua cara, o seu jeito. Mesmo que não assinasse, saberia que é de sua autoria. Cada vez melhor... Sucesso!(comentários de Alice, mãe da Rafa)

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    1. Amiga encontrei você aqui. Quanta saudade. Obrigada por suas pelas palavras

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  3. Que conto impressionante, ele me surpreende em cada ponto que avança, tenho vontade de lê-lo 'infinito'!
    As personagens são desenhadas com uma precisão e uma delicadeza que encantam.
    Gosto da imagem do vestido comprido que vai marcar o crescimento da menina e gosto das outras que vai desenrolando pouco a pouco e surpreendendo e deixando a vontade de descobrir mais com as perguntinhas da menina...
    Um aconchego esse texto, Tânia.
    Beijos.

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