A mãe, na cozinha, lava os pratos. Flores azuis, listras rosas, quadrados verdes, ou totalmente brancos. Aquelas variações de pratos que restam dos que se quebram. A filha sentada à mesa, cabeça suspensa pelos braços, balança as pernas cruzadas, de cima da cadeira alta de madeira. Ora olha a mãe, ora a janela, um pouco aberta. Do pequeno espaço azul do céu, vê-se o desfile lento de algumas nuvens.
- Mãe, passou uma agora; parece um coelho gigante, agora um sapo...
A mãe imita um coaxar. A filha sorri. A mão de mãe ensaboa, lava, transforma coisas pegajosas em livres. A gordura escoa pelo cano. Estende o pano de prato à filha que, vagarosamente, recolhe os pratos do escorredor e seca-os. Empilha-os. Observa a mãe. “Tão bonita. Vou ser assim quando crescer?” O vestido que usa, assim solto, fino e colorido, parece com o da mãe. Um pouco rosa, um pouco azul, um pouco branco. Arrasta a borda no chão, pela insistência da filha de usá-lo sem bainha; na espera de perceber o próprio crescimento aos poucos. E vê-lo atingir a canela, a batata da perna, os joelhos. “Vou saber com certeza, que já sou grande”.
O fogão parece agora estar vestido de sabão. Pensa a filha.
- Que carinha risonha é esta? A mãe pergunta.
- Mãe, pro carnaval você faz pra mim uma roupa de espuma?
- Para você deslizar na passarela?
- Não. Pra você passar a mão em mim.
As duas riem. Encontro da ironia do desejo de crescer com a essência do sonho irrefutável de criança, quando tudo é possível. Assim, da mesma forma que se pode costurar água e sabão e dar forma à fantasia.
A menina olha de novo à janela: as cores da nuvens mudaram. “Por que tudo muda? As cores e formatos das nuvens?”
- Aquela com formato de elefante, também tem células?
A mãe, gentilmente, coloca uma pequena bola de espuma no nariz da filha.
- Não, minha filha, tem água, muito vaporzinho d’água. Parece um pouco com a espuma neste narizinho.
- E nuvem coça feito espuma?
A mãe, em meio a seu próprio sorriso, pensa: “Como as idéias fermentam nesta cabecinha”. A filha, um pouco indignada com o sorriso da mãe, pergunta o que disse de engraçado.
- Nada, minha filha. Só acho que não precisa tanta pressa para entender o mundo. Venha cá.
Senta-se, coloca a filha no colo, enquanto diz:
- Um dia, quando o seu vestido estiver mais ou menos aqui na altura da sua coxa, você vai saber o porquê. A vida muda, porque faz parte dela mudar. Você não quer tanto crescer? Existem coisas de todos os tamanhos, algumas grandes, de um tamanhão imenso, e outras pequenas, bem menores que as pequenas que você conhece.
- Igual célula de formiga?
- É mais ou menos.
- Aí, você falou de novo aquilo que não é nem uma coisa nem outra. Me fala, com certeza, qual é a maior coisa do mundo. De verdade.
- A maior coisa que pode haver no mundo é o que cada pessoa traz dentro dela mesma. Chama-se sentimento.
- Parece cimento!
A filha enrola no dedo o cabelo da mãe. Solta o cacho, cai liso em sua mão.
- É mais forte que cimento.
- Maior que um dinossauro?
- É.
- Maior que um nimbo?
- Também.
- Maior que três planetas?
- Muito maior. A mãe reflete um pouco aponta para o céu e diz:
- É maior que o infinito.
- Nossa... e como cabe aqui tudo dentro da gente?
- Coração de gente é maior que o próprio tamanho. Quanto mais amor se coloca, mais cabe. Assim feito o amor de uma mãe por uma filha infinitamente perguntadeira. É como uma casa muito grande com muitos cômodos.
- Com muitas portas?
- Sim.
- Em quantas portas tem o meu nome?
- Em todas.
- Gostei. Gosto desta palavra: todas.
- E quais são as outras palavras que esta filhinha tanto gosta?
A mãe abraça e balança a filha em seu colo.
- Tudo, céu, balanço, paralelepípedo, amora e cimento. Ah. Não...esqueci.
Leva o dedo a boca enquanto lembra:
- Sentimento infinito.
A mãe olha para fora. Começam a cair os primeiros pingos de um sol com chuva, do tipo arco-íris à vista. Improvisadamente convida a filha:
- Vamos andar na chuva?
A filha não entende. Já que chuva resfria.
- Vamos filha, tire o chinelo.
“Mamãe deve estar doida.”
Mas o convite é tão surpreendentemente tresloucado e travesso que a filha permite. A chuva desce já a ladeira, formando enxurradas dos lados, barquinhos de papel sem almirantes descem tortuosamente a rua. A mão grande da mãe se oferece a da filha. A música “dançando na chuva” não existe. Apenas o riso de mãe e filha girando, girando em companhia. Mãos dadas, pés descalços, água fria.
- Sol e chuva, casamento de viúva, chuva e sol, casamento de espanhol.
- Mamãe, quem casa hoje, viúva ou espanhol?
- Não sei, minha filha.
Algumas pessoas passam aflitas e não conseguem imaginar o motivo de tanto riso.O motivo é tão simples. Tão claro feito folha verde de banho de água do céu. É um dia sem mais nem menos, sem comemoração, sem quê nem porquê. O arco-íris já se faz enfeite no céu. São mãe e filha rindo com o singelo da vida, pés na água fria, balé de pernas girando, entrelaçando-se, mãos segurando a quem ama. Comemoram sem nenhum preparo de festa. São mãe e filha.
A filha sempre girando, volta sua cabeça para o céu, caem pequenas gotas de chuva em seu rosto. Sente o coração batendo forte no peito. Fecha os olhos para impedir a água da chuva, mas continua vendo a mãe. Começa a ficar tonta, enquanto imagina a mãe vestida de nuvem....é um cimento infinito....pensa....gira...
Premiação recebida em Piracicaba - SP em março de 2008
nossa.. adoro esse conto, ele é lindo.
ResponderExcluirto adorando seu blog tânia.. ;) beijo.
Amiga, a forma que você expressa nos seus contos é ímpar, tem a sua cara, o seu jeito. Mesmo que não assinasse, saberia que é de sua autoria. Cada vez melhor... Sucesso!(comentários de Alice, mãe da Rafa)
ResponderExcluirAmiga encontrei você aqui. Quanta saudade. Obrigada por suas pelas palavras
ExcluirQue conto impressionante, ele me surpreende em cada ponto que avança, tenho vontade de lê-lo 'infinito'!
ResponderExcluirAs personagens são desenhadas com uma precisão e uma delicadeza que encantam.
Gosto da imagem do vestido comprido que vai marcar o crescimento da menina e gosto das outras que vai desenrolando pouco a pouco e surpreendendo e deixando a vontade de descobrir mais com as perguntinhas da menina...
Um aconchego esse texto, Tânia.
Beijos.