sexta-feira, 14 de maio de 2010

Frigideira e Azeite-extra-virgem

Olvidar-me.
Não sei se é recordar ou esquecer.
E, acaba sendo o mesmo.
Porque, saber que esqueceu
é uma forma de lembrar.


A empregada agachara para procurar a frigideira dentro do armário, debaixo da pia. Ficou de quatro, sem atentar-se para o fato. Estava sozinha mesmo, os patrões haviam saído. Tateou de um lado a outro. Foi adivinhando as panelas pela forma e textura. Segurou pelo cabo a frigideira. “Achei”. Porém, bastou pegar o cabo – veio a palavra em sua cabeça: FRIGIDEIRA. Olhou para a panela redonda, de laterais baixas, como se visse uma pela primeira vez. Mas, uma dessa forma, era de fato, a primeira. Fez a ponte: frigideira-frígida. Lera uma matéria inteirinha sobre frigidez, no último sábado, no salão da Cota. “Coisa triste, para uma mulher pobre” pensou. “Imagina, além de pobre, ser frígida?”. Essa tal doença, devia é ser coisa de rico, que tem outras compensações.
Colocou o caderninho de receitas sobre a mesa, a panela sobre a trempe, e antes de acendê-la, observou uma pequena mancha de gordura. “Preguiçosa”. Pensou sobre a patroa. Assanho-lhe as idéias. “Nem mesmo lavou a panela direito”. Ela? Ela nunca fora preguiçosa, nem nunca lhe faltou esforços para ter e dar prazer. Lembrou dos namorados, do ex marido, aquele tal, sem vergonha, tocador de viola, que não mantinha a braguilha fechada. Por conta disso, resolveu atualizar-se. Separou. Para não ter que dividir homem com ninguém. “Homem é feito pirulito, não se dividi.” Riu de si mesma. Mas depois, já livre de aborrecimentos, foi se tornando tão difícil... Chegava exausta do trabalho e não tinha ânimo para descer para o Verdão. "Baile? Com aqueles aposentados que podiam acordar a qualquer hora no outro dia?" Pois então, foi se acostumando a deitar cedo, às vezes dormir, às vezes não. Sentia falta de ter alguém ali ao seu lado, mas não queria homem desgovernado. O último namorado a deixara a ver éguas e cabras pela fresta. É, nada acontecera. E ela pensando “que homem respeitador”. E, além disso, engomou muita camisa, passou outras tantas e cozinhou rabada, costela de boi e de porco e a tal couve cortada a faca de doer os dedos. Por conta de tantos desencontros resolveu ficar só. Soma de anos desde então.
O telefone tocou. Largou os afazeres da cozinha e subiu as escadas correndo. O único telefone da casa, ficava no quarto, na mezinha de cabeceira da patroa.
- Alô!
- Cida? Sou eu, Lúcia.
- Oi, dona Lúcia.
- Olha Cida, eu e o Ernesto não vamos almoçar em casa, vamos chegar só depois das cinco. Então não precisa preocupar com a gente.
- Sim senhora, dona Lúcia.
- Faça alguma coisa para você comer, lave o banheiro do meu quarto e passa a roupa. Pode sair mais cedo hoje, viu?
- Obrigada, dona Lúcia.
Desligou o telefone. Estava a colocar os bofes para fora, tamanha a rapidez investida na escada. Sentou na cama dos patrões. “Como é macia”. Levantou e sentou com mais força. O colchão brincou com ela, para cima e para baixo. Gostou da brincadeira.Deitou. Esparramou-se toda sobre a cama. Enrolou-se no edredom branco, de flores rosas e folhas verdes. “Que cheiro bom”. Desejou deitar numa cama desse tipo, com um homem espadaúdo, forte, decidido. Já que a patroa não retornaria, refestelou-se.
Acordou assustada, com um barulho na porta da sala. Afinou os ouvidos. Nada. Alinhou rapidamente as cobertas. “Será que os patrões chegaram?” Desceu. A porta de entrada fechada. E a Belinha pulando na porta, tentava entrar. “Ah, só me faltava essa, até cachorra me acorda!” Confirmou as horas no reloginho de enfeite dentro da cristaleira. 11:45. “Ah, dormira pouco.” Foi até a área, pegou o balde, desinfetante, pano de chão e o rodo, subiu para a suíte. Era cedo ainda. Tinha um bocado de tempo a seu favor. Entrou no banheiro. Olhou todos os bibelôs da patroa. “Quanto perfume do estrangeiro!” Abriu a torneira da banheira. “Lavar? Lavo depois”. Tirou a blusinha azul marinho e a bermuda. Jogou para o alto. Desfilou de calcinha e sutiã em frente ao grande espelho do banheiro. Gostou do que viu. “É, ainda dou um bom caldo!”.
- Ernesto, Ernesto, traga os meus sais de banho?
Gritou, imitando a voz da patroa. Despiu-se. Arremessou a roupa íntima na cama dos patrões. Sempre quisera fazer isso. Colocou o pé direito dentro da banheira. Um arrepio percorreu todo o corpo. Aumentou a água quente. Entrou devagar. Aproveitando a água que lentamente cobria o seu corpo. “Isso é que é vida.” Pegou o primeiro frasquinho no aparador. Aromatizador de ambiente. “Não, não, isso não.” Sais de banho. “Ótimo.” Derramou sem miséria o pozinho azul que dissolveu na água. “Que cheiro bom”. Tirou os grampos dos cabelos. Arremessou no vaso sanitário. Um a um. Afundou inteiramente na água. Ficou por alguns segundos. “Puxa, estou aqui pouco tempo e já quero ser rica”.
Despejou o xampu importado nas mãos. Esfregou nos cabelos, depois o condicionador. Esfregou a bucha, com sabonete líquido em cada dobra, até sentir a pele arder.
Enxaguou-se. Sem pressa. Secou-se com a toalha do Ernesto, que também jogou sobre a cama. E dispôs a toalha da Lúcia nos cabelos molhados. Procurou algum perfume. Não conseguiu abrir nenhum. “Bem, quem não tem cão, caça com gato.” Pegou o aromatizador de ambiente e apertou debaixo dos braços. O secador sempre ficava debaixo da pia. Depois de desembaraçar bem os cabelos, passou ar quente neles. “Como estão macios”.
Vestiu o roupão da patroa. Desceu. Corpo leve e a cabeça cheia de idéias. “O que comeria?”. Explorou a dispensa e os frus frus de dias de festa: Canela da índia, bacalhau, pistache, azeitonas negras, creme de balsâmico aromatizado com tomate seco, trufas, azeite-extra-virgem...”Azeite-extra-virgem? É este, é este que eu comerei.” Diagnosticou-se. Não era frígida. Ficara virgem aos poucos, à medida que distanciara os homens de si. E como virgem, não conhece homem, já nem sentia falta. “Esquecera-se ou olvidara-se?”
Decidiu. Faria bacalhoada para o seu almoço. Pôs-se a procurar uma receita no caderninho da patroa. Falsa bacalhoada. “Essa não.” Bacalhoada de pobre. “Muito menos”. Bacalhoada a moda da casa. “Hummm.” Bacalhoada da vovó gu. “Sei não” Bacalhoada Divina. “É essa”.
Separou um quilo de bacalhau, um de batatinha, meio de palmito fresco, 2 cebolas, 200gramas de azeitona verde, 1/2 dúzia de ovos cozidos, 1 vidro de azeite extra virgem, alho, limão e pimenta do reino. Colocou o bacalhau de molho, cortou as batatas em rodelas, o palmito e as cebolas. Cozinhou e desfiou o bacalhau. As batatas foram cozidas na mesma água. Bateu a gema dos ovos cozidos no liquidificador junto com alho, o limão, a pimenta do reino e o azeite. Desfiou o bacalhau e alternou em um pirex batata, palmito, azeitona, claras cozidas, cebola, bacalhau e o molho de gemas. Deixou assar, até dourar.
Pegou a frigideira. Ateou-lhe fogo. Deitou-lhe grossas rodelas de cebola roxa, tomate italiano, alho, champignon e alcaparras. Bateu no liquidificador azeitonas negras, sem caroço, para não faltar nada de luxo. Juntou tudo à frigideira. E para terminar verteu um bom tanto de azeite-extra-virgem, puríssimo, português. Dispôs a mesa com prato fino e uma taça de vinho. Bacalhoada e guisado. Comeu. Lambeu os dedos. Lambeu o prato. Fartou-se.
Fez um embrulho com a bacalhoada restante. Numa vasilhinha tapeware da patroa. Levaria para casa para o jantar. Poderia convidar o vizinho, viúvo há poucos meses. Então, resolveu separar uma garrafa de vinho. Prostrou-se na poltrona, para ajudar a digestão. 15:00. Seria apertado, mas daria conta das tarefas. Precisava descansar só um pouquinho. Dormiu o sono dos extasiados, dos satisfeitos e ricos.
Acordou assustada. 16:45. A patroa deveria estar prestes a chegar. Correu para o banheiro. Certificou-se da desordem. Desceu. Colocou a vasilha e o vinho em uma sacola. Teria tempo para trocar de roupa. Voltou ao quarto, tirou o roupão. Escolheu o vestido turquesa, que a patroa comprara em Teresópolis. Sandália de salto prata. Estava linda. “Rico é que tem problema com roupas, uma para cada horário. Pobre não, veste o que achar bonito.”
Desceu as escadas. Deixou tudo como estava. Teve vontade de deixar um bilhete para a patroa:
“Lúcia arrume a bagunça. Lave bem o banheiro do jeito que o Ernesto gosta. Deixe a roupa passada. Bom dia. Dona Cida.”
Mas teve dúvida – deixe, era com “x” ou “ch”? Então, desceu, pegou a sacola. Foi embora, requebrando sobre o salto, um pouco antes da Lúcia e o Ernesto chegarem, com seus convidados para a Páscoa.

6 comentários:

  1. Tânia.. adorei o conto, como sempre! confesso que esperava um outro final(mais malvado haha) mais adooorei mesmo :D
    beeijos

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  2. Adorei seu conto Tânia! Imaginei o tempo todo que a Lúcia chegaria...folgada essa Cida heim? Muitos dizem que a empregada é o lado difícil do casamento... será??? rsrs

    Parabéns, muito bom!

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  3. Muito bom. No final Lúcia e Cida acabarão dando
    risadas. As duas sabem viver.

    ok. Abraços.

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  4. Que delícia que ficou o conto... é começar a ler não querer mais parar e ir se assustando 'divertidamente' com as peripécias da Cida... e como ela se parece com todos nós. Queremos mesmo é nos refestelar na primeira oportunidade. Abraços

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  5. "Quando o gato sai, os ratos..."
    Quem nunca sentiu a vontade de se refestelar com aquilo que de certa maneira para nós está distante ou é proibido? Me deliciei com o conto Tânia. Grande Abraço!
    Davi Procópio

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  6. Ah, mas é perfeito o percurso da Cida. Acompanhei seus passos com gosto.
    Bom que deixou-a refestelar nos prazeres daquele lugar que na maioria das vezes, para ela, só dá trabalho.
    Adorei vai ser uma graciosa inspiração para a nova montagem que estou para começar,depois te conto sobre.
    Beijos

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