sexta-feira, 23 de abril de 2010

Democracia Canina


Parte 1
Meu cachorro tem medo da mangueira do jardim. Aprendeu a ter medo. Não entende que a água que bebe, vem exatamente dali. Acabei de voltar lá de fora. Molhei o quintal e o jardim. Lavei a vasilha de água com a escovinha azul. Ele? Está longe. Despertou embriagado de sono. Com apenas um salto, saiu do cochilo, na terra vermelha batida e pernas pra que te quero. Assim, simplesmente. Correu em direção à garagem.
Ele corre sempre. A cabeçorra grande balança de um lado para o outro, olhos saltados, musculatura rija, vibra, treme. E lá vai ele no meio do nada, sem rumo ou direção. Só o faz pelo simples fato de correr, sem nem mesmo perceber que, às vezes, se coloca em uma situação ainda pior do que ficar molhado. Outro dia, numa dessas fugas desenfreadas da mangueira rumou para o canto direito do jardim. Onde está a cadeira de ferro e madeira de demolição e estacou entre ela e a plantação de cactos. Sem saída.
Pensei na possibilidade de uma escola de adestramento. Mas, às vezes, acho que ele não escuta bem. Digo a ele:
- Krug nããão.
E ele? Pula.
- Krug senta.
Pula
- Krug pára
Pula.
Ele é feito gente que lê e não entende. Entende? Do tipo que não alcança as entrelinhas. Esta ali - a palavra e o seu significado. A mangueira e a água escondida dentro dela.Feito o meu vizinho, o Ernesto. Outro dia cismou que entendeu a piada e só não riu porque não tinha graça; enquanto o resto da vizinhança ria de doer a barriga.
- Ernesto...procure escutar. Esforce. É só uma piada sobre um papagaio!
E lá vem ele com essa mania de meio ambiente e por isso não ri de piada de papagaio, porque é desumano.
- Desumano Ernesto? Presta atenção...
É, é bem desse jeito. O meu cão e o Ernesto não aprendem não. E como faço se preciso ensinar para ele, até a próxima reunião da Associação de Bairro, o que significa DEMOCRACIA?
Parte 2
Ontem sonhei com o Krug e o Ernesto. E o meu cachorro não só ouvia, mas também entendia as palavras. Então, eu disse para ele:
- Coragem Krug, não precisa ter medo da mangueira do jardim.
Ele olhou para mim, como quem pergunta e porque não deveria ter medo, se no mundo canino, todos cães sem pêlo têm medo de mangueira de jardim?
- Simplesmente porque ela lhe faz bem também.
Então, em seguida enveredei no maravilhoso mundo da água encanada e ele só ouvindo. Foi quando a campainha tocou e o Krug disse:
- Vai lá, enquanto você atende o Ernesto eu acabo de aguar o jardim.
- Como sabe que é o Ernesto?
- Ah Dalva, esqueceu que sou cachorro e tenho faro até em sonho?
Era mesmo o Ernesto, pedi para ele entrar e já fui levando para cozinha, do jeitão que se faz com amigo. Ele foi logo à garrafa de café. Lembrei que tinha guardado algo para ele.
- Peraí, Ernesto, eu já volto.
E voltei.
- Ernesto é para você.
- Presente? Ele disse como se nunca tivesse recebido um.
- É, e é todo seu. Abra.
O Ernesto ressabiado, meio acanhado, desatou o laço.
- Está vendo Ernesto, presente é bom!
Ele riu. Colocou a mão sobre a boca, tapando os dentes amarelos.
- Abra, Ernesto, quanta teimosia..
Foi quando ele se entregou de vez. Desatou o nó. Rasgou o papel de tecido brilhante. Abriu a caixa. Olhou pra dentro.
- Aí, está vendo, doeu Ernesto, ganhar presente?
Ele olhou para mim. Pequenas gotas de água brotaram dos seus olhos claros, feito as que o Krug temia.
- Obrigado. Ele disse
- Não precisa agradecer Ernesto, isso é um presente. De amigo para amigo.
- Dalva, é o que eu estou pensando?
- Veja você mesmo e tire suas conclusões...
Ele olhou para a caixa de novo e foi dizendo baixinho, com uma vozinha que saia lá do fundo:
- Presente...
- Hum hum
- É todo meu?
- Hum hum
- Pode se dar para um amigo... e não dói ter um.
- É exatamente isso.
- Obrigada Dalva, agora sei o que é DEMOCRACIA.

5 comentários:

  1. Agora sei o que é democracia...(sic!)
    Brilhante!

    ResponderExcluir
  2. hahahhahahhaha

    Medo da mangueira do jardim... democracia... o krug... o Ernesto...pena não podermos 'adestrar' as pessoas para o entendimento da democracia...

    ResponderExcluir
  3. Existe muitos Krugs e Ernestos ainda, e sempre existirão... Descendentes de um geração
    pós-guerra. Gente calada e sofrida, mas com um
    coração imenso, com vontade de viver.

    Brilhante Tânia, abraços

    ResponderExcluir
  4. As vezes precisamos aprender até a receber, como é difícil, às vezes muito mais que dar. Quando se aprende a receber, se aprende a ouvir de verdade, a aceitar a compreender o outro em nossa vida.
    Não vivemos sós, ainda bem...
    Que lindo o texto, lindo o sonho e todas metáforas que constrói.
    Me emocionei como o Ernesto.

    ResponderExcluir
  5. É muito prazeroso,ler seus contos.Quando criança,
    não fazia idéia de como era um Bem-te-vi. Outro dia
    aqui no meu quintal, dei de cara com um deles.
    Meu Deus, como são majestosos!
    Adelaide, não fique triste, por favor.
    Lindo Tania.

    ResponderExcluir