Sabe, eu não sou daqui.
A gente finge que é para sobreviver.
Eu tenho essa facilidade:
SOBREVIVO.
Tiraram o seu rosto da água. Buscou o ar, com toda a força dos pulmões, diafragma e vísceras. O ar entrou com dificuldade, insuficiente. O cheiro de alho torrado, jogado em óleo quente, invadiu a capela. Sua cabeça foi empurrada, de novo, para dentro da água. Bolhas. Zumbido nos ouvidos. A água querendo invadir suas narinas. A cabeça latejava.
- Onde está o dinheiro, FILHADAPUTA?
Puxaram mais uma vez sua cabeça. A água escorreu pelo pescoço e peito arfante. Virou o rosto para cima. Olhou para cada um dos três. Sabia que não devia. Nenhum homem mal gosta que os vistoriem por aí. Mas ele era assim - contemplava. Era a sua forma de se afastar da vida. Expectador.
Ainda menino, era o que ficava mais tempo submerso na lagoa da Pampulha. Fazia graça para os vendedores ambulantes. Pipoca, cachorro quente, churros. Era esse o pagamento dado àquele que ficasse mais tempo sem despontar a cabeça da água. Por vezes desmaiara. E talvez, por pena ou compaixão, tinha o seu ganho. Comia. Levava o nome de piaba, girino pelos feitos e cascudos, pontapés dos meninos que não o venciam na água. O que importa? Não importa. Comia a boca grande, sem a necessidade dos dentes. Quem muito mastiga tem a comida roubada. E comida depois que entra na barriga, é só do dono dela. De outras vezes carregava compras, lavava carros, vendia balas, batia carteiras e chupava o vício dos velhos. Sobrevivia.
Desataram os fios que prendiam seus pulsos.
- Quebra os dedos dele.
Alguém segurou os seus braços. Marreta. Estalos. Um urro contido. Pelo menos as mãos foram soltas. Doíam os dedos e os pulsos. Deixou as mãos ficarem coladas sobre o encosto da banheira velha, cocho de bois e vacas.
Fora o quinto filho não desejado. Nasceu na favela, filho de mãe sem pai. Porque pai eram muitos. A mulher que o tivera, livrara-se dele. Colocou-o, sobre farrapos, dentro do guarda roupa sem portas. Improvisou uma, com um lençol velho. Livrara-se. Desceu com a placenta numa sacola plástica do Epa. Sumira. E, ele ficou sem notícias dela, ou de quem era, assim, já no início da vida. Crianças o acharam à noite, depois de invadirem o barraco na esperança de alguma comida esquecida.
- Tem um gato aí no guarda roupa.
Disse a mais nova e magra. E depois desse feito sobreviveu a anemia, pneumonia, dengue, sarampo, rubéola, DST, difteria.
- Se não falar vai ter que rezar...
- Esse aí tem a boca colada.
- Mas aqui todo mundo fala, MANÉ, a piaba vai chorar!
Cheiro de cigarro mentolado, feito a boca da mulata DIVINA. O cigarro pulou de mão em mão. E o seu pensamento variava, ora aqui, ora com a mulata estendida ao seu lado. Os homens descansavam. Confissão cansa.
- E não é, que cê tá ficano bom nisso, minino?
Os dentes alvos da mulher sorriam pra ele. Tinha 11 ou 12 anos, não sabia bem. Afinal, quem lhe contara os primeiros anos? Enquanto estava no orfanato sabia de cabeça a data e o tempo, quando fugia para rua, perdia-se no mundo, no tempo, na vida. Fora e voltara, até não ter mais idade. E daí por diante só a rua, as marquises. A mulata foi a primeira mulher que tivera. Se aquilo foi à força, não podia dizer. Com ela, gostava de ficar, assim, entregue. Ela tinha lá suas preferências, 2 ou 3 meninos da Guaicurus. Dizia que homem depois que cresce não presta. E faz tudo a maneira deles. Gostava das noites que a mulata lhe chamava. Entrava no quarto e ela lhe dava banho. Depois o enchia de cheiros, perfumes baratos, coloridos, lavanda disso e daquilo. Rosa, roxo, azul e amarelo. Vistoriava o seu corpo em busca de alguma evidência de doença. Depois de lavado, cheirado, vistoriado, ela lhe dava carinho. E ensinava-o a tamborilar couro de mulher. Ele obedecia, feito cordeiro. Servil. Aflito. Tonto. O corpo todo em comichão. Formigando. Sentia explodir por dentro. E os gritos da mulher longe, cada vez mais longe. Depois ela o parabenizava e dizia:
- Não vai me esquecer, heim muleque, fui eu que te ensinei a ser homem.
- Num esqueço não DIVINA, você é uma mãe pra mim.
E eles brincavam de mãe e filho. Ela representava. Achegava-se ao guarda roupa e dizia:
- Meu filhinho, voltei, mamãe tá aqui.
E ele sorria e chorava:
- Mamãe louca, mamãe louca, por que demorou tanto?
Daí Divina lhe dava leite, em bons tempos, biscoitos.
Um dos homens se levantou.
- É agora ou nunca, fala ou morre, desgraçado.
Ele continuou mudo. Queria que a Divina estivesse ali. Ela acalmaria com brandura cada um daqueles milicos.
- Calma lá, com o que vai fazer com o infeliz.
O homem o arrancou do chão. Colocou-o de pé. Ele caiu de novo.
- É aí que quer ficar? E aí? Então fica.
O homem avançou feito um possesso sobre ele. Apertou-lhe o pescoço. Sentiu a traquéia colar. Chutaram sua boca. Perdeu os sentidos. Nada lhe doía. Depois agarraram sua cabeça e bateu com ela contra o chão. Uma. Duas. Três vezes. Um estalo seco, oco...
- Quebrou a cabeça dele, PORRA.
O sangue escorria de sua boca, espalhava suavemente pelo chão.
- Que MERDA!
- Deixe esse farrapo aí, larga, larga isso no chão, depois alguém limpa.
- À noite a gente volta aqui e enterra junto com os outros.
- MERDA. Agora esse dinheiro fica pros mortos.
- E morto lá precisa disso?
Os homens saem rindo para o trabalho. Passarão em suas casas, banharão seus corpos, vestirão a farda, despedirão das esposas e dos filhos.
À noite retornarão para a capela. Não encontrarão o corpo. Sangue seco no chão e só.
- Cadê o DESGRAÇADO?
- O sargento deve ter enterrado.
O homem entra com sua farda de três divisas.
- Porque estão olhando pra mim?
- Enterrou o corpo?
- Não...
Os três se olham desconfiados. Quem fez a brincadeira de esconder o corpo?
Ninguém o procurou. Não vistoriaram os móveis velhos escorados, na balbúrdia do local. Retornam para suas casas, esposas e filhos. Jantam. Com a certeza de que o outro armara a brincadeira.
De madrugada uma pequena porta, de um velho guarda roupa se abre. Ele estava lá. Arrastara-se com dificuldade e se camuflara no primeiro esconderijo que vira. Respirou fundo, como quem respira a primeira vez.
Nascera de novo. SOBREVIVERA.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
A Casinha
O pequeno corre do pátio em direção à grande cozinha. As outras crianças batem em revoada na mesma direção. Sentam-se nos bancos compridos. E, lentamente, uma a uma das canecas são preenchidas com café e leite quente. Para comer deve-se escolher pão com manteiga, bolacha ou biscoito de polvilho. Na verdade toda opção é gostosa, mas o menino se contenta com meio pão com manteiga. É suficiente. Almoçou bastante, fizeram o seu prato preferido hoje, purê de abóbora com carne cozida, o que comeu até se fartar com um bom tanto de arroz e feijão preto.
Depois do lanche da tarde terá pouco tempo para brincar. Às cinco horas toca o sino para o jantar. Pretende acabar de construir sua casinha no final do pátio, onde brincam as crianças menores. Sua obra já está quase pronta, é bem provável que termine antes, dos seus pais chegarem para lhe buscar.
O menino procura em qual das mesas está seu amigo. Faz um sinal com as pequenas mãos para que o amigo providencie o término do lanche. Tiago engole a força um pedaço maior de biscoito de polvilho, que desce arranhando a garganta. Os olhos enchem de lágrimas, por conta do sufoco. O menino ri da expressão estranha no rosto do Tiago e o amigo também. Responde o sinal espalmando uma das mãos, como quem diz, espere mais um pouquinho. O menino espera que o amigo termine.
Todas as crianças colocam as mãos postas e agradecem:
- Muito obrigada Menino Jesus pelo alimento que acabamos de comer, que nunca falte em nossa mesa e de nenhuma família.
O menino confere se Tiago está pronto para sair correndo para o pátio. Vê o rosto do amigo que o desafia a chegar primeiro. Todos correm. O menino e Tiago vão sendo pouco a pouco ultrapassados pelas crianças maiores. Um adulto grita:
- Cuidado, assim vão se machucar.
Descem as escadas, ultrapassam o campo de futebol arranjado pelos maiores. Seguem em direção ao extremo do terreno, à direita, onde o muro se encontra em ângulo de 90 graus.
- Rápido Tiago, a gente precisa terminar essa obra hoje.
- E se não der tempo?
- Vai dar, vai dar. É só você fazer o que eu mando. Pega um pouco mais de água, o caneco eu escondi dentro da casa pra ninguém pegar.
Tiago corre até a torneira, de onde sai à mangueira de aguar a horta. Enche o caneco. Retorna para perto da casinha, vai molhando a terra, cavando e misturando, formando um barro mole que entrega ao amigo. O menino aproveita os tijolos restantes da última reforma da grande casa, coloca um sobre o outro, intercala com barro, retira as sobras com a mão.
- A casa tá ficando boa. Vou colocar uma porta aqui.
O menino afasta para que o amigo veja o local exato da futura porta.
- Não tem jeito de fazer isto. O tijolo vai cair daí de cima.
Tiago coloca a mão na cabeça, em um gesto que demonstra total impossibilidade no intento.
- É só a gente colocar um pedaço de pau aqui e ele segura o tijolo de cima.
Responde o menino.
Tiago não entende de onde o amigo tira tantas idéias para as suas construções.
- E desse jeito a gente vai fazer a janela. A gente prega um pedaço de pano e abre e fecha a hora que quiser.
O menino tira o pano do bolso que disfarçadamente conseguiu do quarto de costura. O tecido é vermelho e tem flores amarelas e verdes. Tiago pega o pano e o estende diante de si.
- Eta, é bonito mesmo. A casa pode ser minha e sua?
- Pode.
O menino responde sem perder a concentração sobre sua obra.
- Mas você não disse que vai falar pro seu pai e pra sua mãe que a casinha é sua?
- Disse. Aí eu falo que é sua também, porque você tá me ajudando.
Tiago fica imensamente feliz, com a proposta do amigo. Pensa na cara das crianças mais velhas na hora que verem a casinha. Lembra que trouxe algo escondido também:
- Ah, eu trouxe uma coisa também.
E já vai tirando do bolso do short.
- Você conseguiu mais pano?
- Não. É um pedaço de pão com manteiga. Você qué?
Estende o pão amolecido para o amigo. Que recusa, balançando a cabeça negativamente, como a dizer que isto é desnecessário uma hora daquela.
Tiago tenta limpar o barro que se mistura ao pão. Percebe que a tentativa o torna ainda mais sujo. Mas come assim mesmo.
- Hum tá bom...
Começa a dançar improvisando uma repetição ritmada:
- Tá bão, tá bão, tá bão meu pão!
Os amigos riem. E o menino imita Tiago.
- Tá bão, tá bão, tá bão meu pão! - Tá bão, tá bão, tá bão meu pão!
De repente entendem que estão sendo observados por outras crianças. E como não querem chamar a atenção para a casinha, despistam e retornam ao trabalho.
A construção do telhado foi bem fácil, utilizaram folhas de bananeira. Assim que consideraram a obra terminada, olharam um para o outro, afastaram ao mesmo tempo, para observar a casa de longe. Estava realmente linda. A cortina da janela contrastava com a folha verde da planta e com o vermelho do barro ainda brilhante.
O sino toca. Algo dentro do menino agita, não terá mais tempo de curtir a sua casa recém construída. Está quase na hora dos seus pais chegarem. Olha para Tiago que já demonstra querer subir para o jantar. Corre. O menino vai atrás, ora olha o amigo, ora a casinha que vai se tornando aos poucos menor. Procura uma mesa e um lugar, não antes de lavar as mãos. Senta-se em frente ao prato esmaltado branco. Alguém lhe serve uma sopa com macarrão de letras, abóbora e carne. O menino entende que a sopa foi feita com o resto do almoço. Mas não tem problema, é bom assim mesmo. Enquanto leva as colheradas à boca pensa em sua casinha. Faz planos. Verifica os erros mentalmente e as melhorias que podem ser feitas. Olha para o relógio. Toma uma escolha, a partir de amanhã começará a construir pontes. Observa a colher que conduz à boca. Esta colher tem mais letras A’s que a anterior. E assim fica até a última colherada. Pensa na casa e verifica as vogais na colher, pensa nas pontes e verifica as consoantes.
Acabado o jantar, todos devem se preparar para o banho. O menino se preocupa – quando os seus pais irão chegar para levá-lo para casa? O banho também é bom, morno, sabonete branco com cheiro, faz espuma e limpa o restante de terra que sobrou nos braços. Depois de seco coloca o pijama azul claro parecido com o de Tiago, penteia os cabelos, escova os dentes. Sente as mãos em seu ombro, de alguém que lhe alerta que está na hora de ir para a cama. Deixa-se ser conduzido até o quarto, Tiago segue junto. Deitam-se, cobrem-se com o cobertor listrado. O sono chega de manso com passos de estopa. Ouve a voz do amigo:
- É amanhã que seus pais vêm lhe buscar?
- Eu não sei.
- Mas você não disse que assim que terminasse a casa eles viriam?
- Disse. Mas acho que vai ser assim que eu terminar a ponte. Você me ajuda amanhã?
- Ajudo. Você me convida pra ir a sua casa?
- Convido, Tiago.
A voz de algum adulto diz de longe:
- Silêncio meninos, tá hora de dormir.
Um adulto apaga a luz do dormitório. As crianças voltam a se embriagar de sono. O menino tenta reconhecer os objetos no escuro, através da escassa claridade vinda da lua. Reconhece a cama do Tiago, a fileira de beliches à sua direita. Sente-se confortável. O sono já lhe faz ver coisas. Ainda enxerga o quarto e a cama dos outros meninos, mas também já vê a casinha no fundo do pátio, a colher cheia de letras.
Não lhe falta nada. Nada mesmo. Tem quase tudo que as outras crianças têm. Roupas, comida, adultos, outras crianças, projetos. Em seu sonho começa a andar pelo orfanato. Vê as outras crianças dormindo. Tem quase tudo, só falta uma coisa. Não há nada que una o suco à jarra, a jarra à mesa, não há nada que vela o sonho das outras crianças. Existem apenas coisas e pessoas. Não há nenhum tipo de cola. As mãos do Tiago misturam o barro que une um tijolo ao outro. A sua casinha aparece em seu sonho, um tanto maior que a do pátio, de forma que pode entrar dentro dela. Desce as escadas do refeitório, pára diante da porta, observa a cortina de chitão vermelho balançar na janela. Uma grande colher com macarrão de letras flutua em sua frente. De novo pensa: preciso de um tipo de cola. As letras A’s flutuam, flutuam, aumentam. Lembra da professora dizendo A de amor. Preciso de um tipo de cola. A porta da casinha está próxima. E de repente tudo parece fazer sentido. Vê Tiago descendo as escadas correndo:
- Eles chegaram, eles chegaram.
O coração do menino dispara. A colher flutua cheia de letras que se mexem e se colam. A casinha parece estar viva. Tudo está em silêncio. Suspense. Só cores e cheiros se agitam. Sente o coração maior que o peito a lhe bater nos ouvidos. A porta da casinha se abre, as letras se juntam e tudo se transforma em uma só palavra, que cola todas as coisas e pessoas e o número de dias de espera:
- Filho...
Depois do lanche da tarde terá pouco tempo para brincar. Às cinco horas toca o sino para o jantar. Pretende acabar de construir sua casinha no final do pátio, onde brincam as crianças menores. Sua obra já está quase pronta, é bem provável que termine antes, dos seus pais chegarem para lhe buscar.
O menino procura em qual das mesas está seu amigo. Faz um sinal com as pequenas mãos para que o amigo providencie o término do lanche. Tiago engole a força um pedaço maior de biscoito de polvilho, que desce arranhando a garganta. Os olhos enchem de lágrimas, por conta do sufoco. O menino ri da expressão estranha no rosto do Tiago e o amigo também. Responde o sinal espalmando uma das mãos, como quem diz, espere mais um pouquinho. O menino espera que o amigo termine.
Todas as crianças colocam as mãos postas e agradecem:
- Muito obrigada Menino Jesus pelo alimento que acabamos de comer, que nunca falte em nossa mesa e de nenhuma família.
O menino confere se Tiago está pronto para sair correndo para o pátio. Vê o rosto do amigo que o desafia a chegar primeiro. Todos correm. O menino e Tiago vão sendo pouco a pouco ultrapassados pelas crianças maiores. Um adulto grita:
- Cuidado, assim vão se machucar.
Descem as escadas, ultrapassam o campo de futebol arranjado pelos maiores. Seguem em direção ao extremo do terreno, à direita, onde o muro se encontra em ângulo de 90 graus.
- Rápido Tiago, a gente precisa terminar essa obra hoje.
- E se não der tempo?
- Vai dar, vai dar. É só você fazer o que eu mando. Pega um pouco mais de água, o caneco eu escondi dentro da casa pra ninguém pegar.
Tiago corre até a torneira, de onde sai à mangueira de aguar a horta. Enche o caneco. Retorna para perto da casinha, vai molhando a terra, cavando e misturando, formando um barro mole que entrega ao amigo. O menino aproveita os tijolos restantes da última reforma da grande casa, coloca um sobre o outro, intercala com barro, retira as sobras com a mão.
- A casa tá ficando boa. Vou colocar uma porta aqui.
O menino afasta para que o amigo veja o local exato da futura porta.
- Não tem jeito de fazer isto. O tijolo vai cair daí de cima.
Tiago coloca a mão na cabeça, em um gesto que demonstra total impossibilidade no intento.
- É só a gente colocar um pedaço de pau aqui e ele segura o tijolo de cima.
Responde o menino.
Tiago não entende de onde o amigo tira tantas idéias para as suas construções.
- E desse jeito a gente vai fazer a janela. A gente prega um pedaço de pano e abre e fecha a hora que quiser.
O menino tira o pano do bolso que disfarçadamente conseguiu do quarto de costura. O tecido é vermelho e tem flores amarelas e verdes. Tiago pega o pano e o estende diante de si.
- Eta, é bonito mesmo. A casa pode ser minha e sua?
- Pode.
O menino responde sem perder a concentração sobre sua obra.
- Mas você não disse que vai falar pro seu pai e pra sua mãe que a casinha é sua?
- Disse. Aí eu falo que é sua também, porque você tá me ajudando.
Tiago fica imensamente feliz, com a proposta do amigo. Pensa na cara das crianças mais velhas na hora que verem a casinha. Lembra que trouxe algo escondido também:
- Ah, eu trouxe uma coisa também.
E já vai tirando do bolso do short.
- Você conseguiu mais pano?
- Não. É um pedaço de pão com manteiga. Você qué?
Estende o pão amolecido para o amigo. Que recusa, balançando a cabeça negativamente, como a dizer que isto é desnecessário uma hora daquela.
Tiago tenta limpar o barro que se mistura ao pão. Percebe que a tentativa o torna ainda mais sujo. Mas come assim mesmo.
- Hum tá bom...
Começa a dançar improvisando uma repetição ritmada:
- Tá bão, tá bão, tá bão meu pão!
Os amigos riem. E o menino imita Tiago.
- Tá bão, tá bão, tá bão meu pão! - Tá bão, tá bão, tá bão meu pão!
De repente entendem que estão sendo observados por outras crianças. E como não querem chamar a atenção para a casinha, despistam e retornam ao trabalho.
A construção do telhado foi bem fácil, utilizaram folhas de bananeira. Assim que consideraram a obra terminada, olharam um para o outro, afastaram ao mesmo tempo, para observar a casa de longe. Estava realmente linda. A cortina da janela contrastava com a folha verde da planta e com o vermelho do barro ainda brilhante.
O sino toca. Algo dentro do menino agita, não terá mais tempo de curtir a sua casa recém construída. Está quase na hora dos seus pais chegarem. Olha para Tiago que já demonstra querer subir para o jantar. Corre. O menino vai atrás, ora olha o amigo, ora a casinha que vai se tornando aos poucos menor. Procura uma mesa e um lugar, não antes de lavar as mãos. Senta-se em frente ao prato esmaltado branco. Alguém lhe serve uma sopa com macarrão de letras, abóbora e carne. O menino entende que a sopa foi feita com o resto do almoço. Mas não tem problema, é bom assim mesmo. Enquanto leva as colheradas à boca pensa em sua casinha. Faz planos. Verifica os erros mentalmente e as melhorias que podem ser feitas. Olha para o relógio. Toma uma escolha, a partir de amanhã começará a construir pontes. Observa a colher que conduz à boca. Esta colher tem mais letras A’s que a anterior. E assim fica até a última colherada. Pensa na casa e verifica as vogais na colher, pensa nas pontes e verifica as consoantes.
Acabado o jantar, todos devem se preparar para o banho. O menino se preocupa – quando os seus pais irão chegar para levá-lo para casa? O banho também é bom, morno, sabonete branco com cheiro, faz espuma e limpa o restante de terra que sobrou nos braços. Depois de seco coloca o pijama azul claro parecido com o de Tiago, penteia os cabelos, escova os dentes. Sente as mãos em seu ombro, de alguém que lhe alerta que está na hora de ir para a cama. Deixa-se ser conduzido até o quarto, Tiago segue junto. Deitam-se, cobrem-se com o cobertor listrado. O sono chega de manso com passos de estopa. Ouve a voz do amigo:
- É amanhã que seus pais vêm lhe buscar?
- Eu não sei.
- Mas você não disse que assim que terminasse a casa eles viriam?
- Disse. Mas acho que vai ser assim que eu terminar a ponte. Você me ajuda amanhã?
- Ajudo. Você me convida pra ir a sua casa?
- Convido, Tiago.
A voz de algum adulto diz de longe:
- Silêncio meninos, tá hora de dormir.
Um adulto apaga a luz do dormitório. As crianças voltam a se embriagar de sono. O menino tenta reconhecer os objetos no escuro, através da escassa claridade vinda da lua. Reconhece a cama do Tiago, a fileira de beliches à sua direita. Sente-se confortável. O sono já lhe faz ver coisas. Ainda enxerga o quarto e a cama dos outros meninos, mas também já vê a casinha no fundo do pátio, a colher cheia de letras.
Não lhe falta nada. Nada mesmo. Tem quase tudo que as outras crianças têm. Roupas, comida, adultos, outras crianças, projetos. Em seu sonho começa a andar pelo orfanato. Vê as outras crianças dormindo. Tem quase tudo, só falta uma coisa. Não há nada que una o suco à jarra, a jarra à mesa, não há nada que vela o sonho das outras crianças. Existem apenas coisas e pessoas. Não há nenhum tipo de cola. As mãos do Tiago misturam o barro que une um tijolo ao outro. A sua casinha aparece em seu sonho, um tanto maior que a do pátio, de forma que pode entrar dentro dela. Desce as escadas do refeitório, pára diante da porta, observa a cortina de chitão vermelho balançar na janela. Uma grande colher com macarrão de letras flutua em sua frente. De novo pensa: preciso de um tipo de cola. As letras A’s flutuam, flutuam, aumentam. Lembra da professora dizendo A de amor. Preciso de um tipo de cola. A porta da casinha está próxima. E de repente tudo parece fazer sentido. Vê Tiago descendo as escadas correndo:
- Eles chegaram, eles chegaram.
O coração do menino dispara. A colher flutua cheia de letras que se mexem e se colam. A casinha parece estar viva. Tudo está em silêncio. Suspense. Só cores e cheiros se agitam. Sente o coração maior que o peito a lhe bater nos ouvidos. A porta da casinha se abre, as letras se juntam e tudo se transforma em uma só palavra, que cola todas as coisas e pessoas e o número de dias de espera:
- Filho...
A Vida dos Outros
Resolveu ser outro, só por um dia, queria sentir, pensar, viver a verdade dos outros. Não é tão bom um dia após o outro em um escritório de contabilidade, café sempre requentado, ar condicionado estragado e o cheiro de lavanda do desinfetante barato. Precisava de um dia livre. Então, ligou para o trabalho e inventou o adoecimento de uma tia, que não tinha. Foi logo falando pelo telefone que precisava viajar às pressas para o interior. O austero e metódico supervisor mostrou-se solicito, perguntou mundos e fundos. E ele, que queria ser outro, mostrou-se aflito: - Desculpa, senhor Hélio, mas se eu não desligar o telefone agora, perco o ônibus para ...Piranga. Gostou do nome. Se fosse outro, até podia ter nascido lá. E foi tão veemente na pressa, que ouviu do outro lado da linha:
-Desculpa eu, meu filho, vá, vá logo. Olha, cuida bem da sua tia. Estimo as melhoras!
E, não é, que é bom ter uma tia, mesmo que doente? Sentiu um lampejo de compaixão. Um tipo de responsabilidade terna. Um sentimento não tão grande quanto o dedicado a uma mãe, mas um sentimento irmão deste, um amor torto. E já que era outro, tirou a mochila de cima do guarda roupa, sacudiu para que a poeira saísse dela. Jogou lá dentro duas mudas de roupa, pegou uma caneta e as palavras cruzadas, mas desistiu logo, sendo outro, possivelmente não gostaria de fazer palavras cruzadas. Trancou a porta do quarto, fingiu não conhecer os outros hóspedes, deixou a chave na recepção. Saiu. Sentiu o dia morno, que já se anunciava quente. Olhou para os lados. O que faria? Mas, como o que faria? É obvio, vou para Piranga. Desceu até o ponto, não o de costume para ir ao trabalho, buscou o rumo da rodoviária.
Caminhou como quem vai para Piranga, visitar a tia doente. Desceu na Afonso Pena, atravessou a avenida correndo. Tumulto, pessoas indo para o trabalho, o sino da Igreja São José tocou, o semáforo abriu, fumaça do cano de descarga dos ônibus, táxi coletivo parando e saindo. As primeiras horas de um dia sendo outro. O que o aguardava? A vida tinha pressa, flashes, o estudante no ponto de ônibus, o cadeirante na faixa de pedestre, o homem de terno dentro do carro importado, a mulher de saia curta, tantas possibilidades. E ele podia ser todas. Caminhava e girava a cabeça, procurando sentir o que sentiam as pessoas à sua volta. Mistura. Nunca sentira tantos cheiros, tamanha liberdade. Quis sair de si.
Sentiu fome, chegou à rodoviária. Pensou comer alguma coisa antes da viagem. Parou na primeira lanchonete bem próxima à escada rolante, comprou antes um jornal, já que nunca o lia e depois decidiu fazer o mesmo pedido da senhora a sua frente.
- Quero um pão de queijo, café e uma salada de frutas. “Salada de frutas?” Enfim, comeu, até que gostou. Embolou o guardanapo. Pronto. Entrou na fila, comprou sua passagem. Precisava aguardar 45 minutos ainda. E já que não era ninguém, colocou-se a ouvir a conversa de quem estava próximo. Quer lugar melhor para não ser ninguém do que numa rodoviária? Ninguém o conhece, está ali só de passagem e possivelmente ninguém o verá novamente. E foi durante um tempo a mãe com o filho no colo, o homem sóbrio solitário, os rapazes que riam de alguma coisa enquanto fumavam. O tempo passou rápido. O dia era leve.
8:45. Desceu as escadas e foi até a plataforma indicada no bilhete. O ônibus estacionou. Foi o primeiro a entrar, buscou a sua poltrona, 13, colocou a mochila entre as pernas. Não ligou o MP4, quis ver e ouvir outras coisas, outras verdades, deixar de ser quem era. Observava cada um que entrava. Sentou próximo à janela. Quem seria sua companhia de viagem? Uma senhora gorda, de ancas largas, aproximou, vistoriou de perto o número da poltrona. “Não, não, não”. Passou. O homem baixo, de bigode, que usava um terno gasto e sujo, rumou para o fundo do ônibus. “Se eu fosse ele, certamente não teria esposa. Nenhum homem que tem uma, anda assim.” Uma mulher com três crianças, entalou entre as poltronas. “Ai que berreiro, Deus me livre” Deixou cair um pacote na cadeira ao seu lado. – Desculpa! Passou a mão no pacote e nos filhos, continuou pelo corredor. Sentou três poltronas após a sua. Um vendedor de água, gritava, chamou sua atenção para fora. “E se fosse vendedor de água? Que tipo de pensamento teria, o que comeria aos domingos? Quantas mulheres já teria comido?” Sorriu dos próprios pensamentos, surpreendeu-se por ter alguém sentado ao seu lado. Uma moça pequena, cabelos pretos e ralos, olhos grandes, boca pequena, pele clara. Leve feito pássaro recém pousado ali.
- Bom dia!
Não era assim, nunca puxaria conversa, mas como se propôs ser outro...
- Bom dia, ela respondeu quase engolindo as palavras.
Sentiu-se confortável para observar a moça displicentemente. Cara dura. Diante dela e com ela assistindo a tudo. Um voyeur às avessas. Sentiu prazer nisto. Desceu o olhar pelo pescoço a mostra, um pingente em forma de gota e o pequeno decote. O vestido decente, claro, rente ao corpo, até os joelhos. Nenhuma sobra, parece ter sido feito pra ela. “Roupas daquele tamanho não deve ser nada fácil encontrar”. Refez o caminho, calmamente. Encontrou os olhos dela estatelados, interrogativos. “Decerto tenta pensar quem eu sou” Insistiu no olhar. Nunca fizera isto antes. Sentiu-se forte, viril até.
- Está calor, não é mesmo? Ela disse envergonhada. Preferiu não responder, assim o constrangimento dela aumentaria. “Não baixo a guarda e retiro as suas”. Pensou.
- Qual o seu nome?
- Nidinha. Ela respondeu ainda mais aflita, contorcendo o pingente entre os dedos da mão direita. Ele gostou, gostou muito do nome no diminutivo. Quantos nomes poderiam ter aquele apelido. Era uma boa idéia. Um nome que não é o verdadeiro nome. “E o seu?” É claro que esta seria a próxima pergunta. Não conseguia pensar em um nome que não fosse o que tinha. Resolveu não dar tempo para que perguntasse o seu. Seria assim, ela viajaria ao lado de alguém sem nome.
Nidinha olhava para ele aflita, como que pedindo socorro. Puxou a mala que estava no chão, com os pés. Ele se ofereceu para ajudar.
- Quer que eu coloque a bolsa no bagageiro?
- Se não for incômodo.
- Não, não é. “Como assim não, não é?” Riu de si mesmo, ou melhor, riu desse outro. Direto, sem escrúpulos, mas quase cavalheiro. Levantou. Ficou de frente para ela, passou bem devagar. Endireitou a postura para que parecesse mais forte. Ao voltar, deixou suas pernas encostarem nas dela. Não pediu desculpas. Sentou. Levantou o suporte de braço, que dividia as poltronas. Viu que a moça ficou incomodada. A pequena recostou-se procurando por uma melhor posição. Resolveu, ousar um pouco mais. Deu um leve tapinha na perna esquerda da moça:
- Quer ir na janela?
- Não obrigada, não gosto de janela.
Gostou da idéia de não gostar de janela. Camaleou-se:
- Eu também não, mas como não tinha nenhum outro lugar vago...
- Ah..
- Você vai até Piranga, ou desce antes?
-Até Piranga.
-Ah..
Silêncio. Ambos se olharam e do pouco que ele viu gostou. Mas não da moça exatamente. Gostou da idéia de ser outro e poder dizer ou fazer o que bem quisesse.
- Você mora em Piranga?
- Não, estou indo visitar uma tia que adoeceu de repente.
- Puxa, que chato, sinto muito.
- Eu também.
- E é grave?
- Infelizmente sim. Reforçou a entonação ao dizer infelizmente, viu o peito da garota se encher de ar, o pingente subiu e desceu docemente, viu que ela se apiedara dele. Emendou logo:
- É dengue.
- Dengue?
- Hemorrágica... riu por dentro.
- Meu Deus, que horror. Coitada da sua tia.
- Coitada da minha família também. É uma tia muito querida sabe? Mas infelizmente ela e minha mãe brigaram quando eu era bem novo. Mudei de Piranga e nunca mais voltei.
- Nossa, como é triste.
- É de doer. Eu sempre quis conhecer a minha família.
As idéias surgiam aos borbulhões em sua cabeça. Quanto mais atenção a moça lhe dava, mais prazer sentia e mais vontade de contar com detalhes a sua trágica e nova vida. A mãe que fora rejeitada pela família, por ser mãe solteira, ele que não conhecera o pai e que fora criado longe de todos, o pedido da mãe antes de morrer para que procurasse os parentes.
- E sua mãe morreu de quê?
- Leucemia. E desde então eu estou sozinho...
E como verdade acaba sendo o tanto de certeza com que se conta um fato, a verdade de sua nova vida foi surgindo enquanto a viagem prosseguia.
- E você não tem receio sobre como a sua família vai lhe receber?
- Na verdade tenho, mas é tão importante pra minha mãe, ou melhor, era né. E acho que é isso que eu preciso fazer. Conhecer a minha família, defender a imagem da minha mãe. Olha que mãe melhor, eu não podia ter tido.
Cheque mate, estava feito. Nidinha, estava entregue, queria cuidar dele, ofereceu biscoito recheado de chocolate e ele comeu, comeu e detestava chocolate. Mas gostava dessa moça toda dada, crédula, ingênua.
- Você já me contou a sua vida inteira e ...
- Inteirinha. Repetiu olhando-a de cima a baixo.
- E eu nem sei o seu nome.
Pronto. De novo. Agora não tem jeito, preciso ter um novo nome. Resolveu brincar com ela.
- Eu lhe dou um presente se você acertar.
- Como assim, acertar o seu nome? Impossível.
- Não é não. Meu nome é muito comum e todos falam que o meu nome é a minha cara.
Esperou que ela o batizasse.
- Olha, não vai rir de mim heim, eu acho que é João.
- João? Tentou se imaginar João, gostou. Nome simples, comum, forte.
- Não falei que ia acertar?
-Você está brincando...Não acredito que é isso mesmo.
- Quer que eu lhe mostre meu RG?
- Não, claro que não. Respondeu sorrindo. É que é difícil de acreditar.
“Ótimo.Mas é claro que você acreditaria.” Afinal se vê sempre aquilo que se acredita.
- Pois acredite, minha mãe escolheu esse nome em homenagem ao meu avô. Adorou a sua própria resposta e ainda aumentou sua família com mais um membro. Se continuasse assim até o final da viagem teria uma família enorme.
- Qual é o nome da sua tia?
- Nenêga.
E quem não tem uma parenta chamada nenêga? E além do que, era a forma camaleônica de nome que é, e não é.
- Nenêga. Ela repetiu. Eu conheço pelo menos dez nenêga em Piranga.
Sentiu o perigo, ela farejava, buscava mais respostas que ele não tivera tempo para pensar.
- Onde ela mora?
“Ai, merda”
- Não sei bem, ela está no hospital, vou visitá-la.
Ele precisava freiá-la. Caso contrário poderia ser descoberto e a viagem seria desagradável, quando mal iniciava seu único dia de uma nova vida. Pegou o pingente da moça. Segurou-o entre os dedos. Fingiu interesse pela bijuteria. A moça assustou-se com seu comportamento.
- Bem, até agora estou só eu falando de mim, fale um pouquinho de você...
Soltou o pingente, deixou Nidinha livre para falar de si. Árvores, carros passando, a paisagem já modificara, distante do centro de BH, longe de quem era. À medida que o ônibus seguia, camaleonizava. Feito a paisagem de fora. O tom de terra vermelha, vindo das mineradoras, cobria toda a BR e as plantas. Sentia-se mais ele mesmo, por mais estranho que fosse. Era plástico, elástico, flexível, mutante. Cada vez que Nidinha terminava um assunto ele arrumava uma forma de aproximar dela. De tal jeito que ela já não fazia interrupções, de um assunto pulava para outro, contava detalhes da cidade e dela mesma ininterruptamente.
Parada para lanche, em Lafaiete. Desceu primeiro, ela disse que viria depois. “Que seja, assim posso pensar mais algumas coisas”. Resolveu seguir o primeiro passageiro à sua frente, que também saia pelo corredor. Era o homem de bigode e terno gasto. Sentou próximo à sua mesa, atentou o ouvido para poder fazer o mesmo pedido.
- Uma dose de conhaque. Bebeu à mesma maneira, de um gole só. Enquanto esperava o seu pedido, bebeu a segunda dose. “Que merda, escolho logo um alcoólatra”. Não tinha o costume sendo o outro de antes, de beber, mas na sua vida nova, como João bebia e adorava conhaque. Chegou seu pedido: Uma lasca de torresmo, peludo, gordurento. Sentiu náusea. Mas precisava esquecer antigos hábitos. “E não é que é bom?” A gordura envolveu sua boca, escorreu no canto direito. Limpou com o canto do braço. Sentiu-se leve, já fazia planos de mais um dia sendo João. Emendaria logo a sexta feira e retornaria na segunda para o trabalho. Até lá, veria que rumo daria a doença da tia. “O quê, mais um conhaque?” Bebeu o terceiro, levantou, foi ao banheiro. Usou o mictório, lavou a boca e o rosto. Procurou papel toalha para secar as mãos. Não encontrou, secou-as na calça mesmo. Viu-se no espelho, quase não se reconheceu. Gostava de ser João, tinha uma tia doente, não gostava de janelas, nem palavras cruzadas, adorava biscoitos de chocolate, achava torresmo irresistível e era alcoólatra.
Sentiu vertigens. Voltou para o ônibus, lembrou que não inventara nenhuma história, mas já nem conseguia. Queria dormir. Nidinha não estava na poltrona. Sentou próximo à janela fechou os olhos, sonolento. Não tinha vontade de conversar, precisava dormir. O ônibus chacoalhou ao ser ligado, seu estômago revirou um pouco, o sonho era insuportável, as pálpebras eram forçadas para baixo. Dormiu. Dormiu todo restante da viagem.
Acordou atordoado. O ônibus estava parado. Escutou Nidinha falando:
- Coitado.
Outra voz de mulher dizia:
- Dengue hemorrágica? Meu Deus...
Sonhava, ou Nidinha falava com ele enquanto dormia? Olhou para fora do ônibus. Algumas pessoas andavam na plataforma carregando bagagens. O motorista e o trocador estavam lá fora. “Alguma parada ou já era Piranga?” Sentia-se tonto, enjoado. Olhou para o lado, procurando por Nidinha. A poltrona estava vazia. Algumas pessoas estavam de pé no corredor, todas olhavam para ele, como quem assiste a um filme. Não reconheceu ninguém, como sendo passageiro do ônibus. Um senhor grisalho disse:
-Ele acordou.
Parecia que sua nova vida estava sendo narrada. Ouviu uma outra voz:
- Nidinha, ele acordou.
Nidinha surgiu do meio do grupo, estacionado no corredor. Ela aproximou dele com os olhos marejados.
- Nidinha? Você está chorando?
- João, qual é o nome da sua tia Nenêga?
- O quê?
- Não sabia o que responder assim pego de surpresa.
- João a sua tia chama Efigênia?
- É...a minha tia chama Efigênia.
- Nossa, que triste... ecoou em cada boca do grupo.
- Ai meu Deus. Nidinha disse, levando a mão ao pingente.
Não conseguia entender o que acontecia.
- Chegamos em Piranga?
- Chegamos, calma João, tente ficar calmo.
- Eu estou calmo, só bebi um pouco, você sabe, estou um pouco nervoso por causa daquela história que eu lhe contei.
- Sim, claro.
Olhar de compreensão. Ele pode quase jurar que viu aprovação dela, por ter bebido.
- Só bebendo mesmo...
- João...
- O quê, o quê está acontecendo Nidinha?
- Eu não tenho uma boa notícia.
- Como assim?
- João, esse aqui é o meu pai, a minha tia, meus primos...
“Ai minha santa paciência, deixa eu sair logo daqui, já nem sei se quero ser João”.
- Eles vieram me buscar aqui na rodoviária. Daí entendi o que aconteceu.
“Puta merda, ela entendeu a minha mentira e já vai a forra”.
- É que a Efigênia, que é nossa vizinha, estava no hospital com dengue hemorrágica, eu não sabia...
- O quê?
- É, a sua tia Nenêga é nossa vizinha.
-É?
- Ela morreu João, agora pela manhã. Sinto muito.
- ....
João pegou sua mochila entre as pernas. Tentou ficar de pé. Bateu a cabeça no bagageiro. Que dor insuportável. Os olhos molharam de lágrimas. Continuava escutando os narradores de sua nova história:
- Coitado, mal conheceu a tia e está tão sentido.
- Agora, ta órfão de tudo.
“Puta merda, mal sou outro e já perco um parente.”
A cada passo no corredor apertado recebia um abraço e um sinto muito de algum parente da Nidinha.
- Coragem meu filho!
- Deus quis assim.
- A Efigênia dizia mesmo de um sobrinho que nunca mais viu. Ela esperava por você, sabia?
Do corredor apertado do ônibus, seguira outro ainda maior. A notícia pela cidade de Piranga, curiosos, café na casa dos parentes, a casa vazia da tia adotada, velório e enterro. Fausto nunca mais voltou para a pousada em Belo Horizonte. Ou melhor, João nem mais se lembrava que um dia fora Fausto. Já não era, era outro.
-Desculpa eu, meu filho, vá, vá logo. Olha, cuida bem da sua tia. Estimo as melhoras!
E, não é, que é bom ter uma tia, mesmo que doente? Sentiu um lampejo de compaixão. Um tipo de responsabilidade terna. Um sentimento não tão grande quanto o dedicado a uma mãe, mas um sentimento irmão deste, um amor torto. E já que era outro, tirou a mochila de cima do guarda roupa, sacudiu para que a poeira saísse dela. Jogou lá dentro duas mudas de roupa, pegou uma caneta e as palavras cruzadas, mas desistiu logo, sendo outro, possivelmente não gostaria de fazer palavras cruzadas. Trancou a porta do quarto, fingiu não conhecer os outros hóspedes, deixou a chave na recepção. Saiu. Sentiu o dia morno, que já se anunciava quente. Olhou para os lados. O que faria? Mas, como o que faria? É obvio, vou para Piranga. Desceu até o ponto, não o de costume para ir ao trabalho, buscou o rumo da rodoviária.
Caminhou como quem vai para Piranga, visitar a tia doente. Desceu na Afonso Pena, atravessou a avenida correndo. Tumulto, pessoas indo para o trabalho, o sino da Igreja São José tocou, o semáforo abriu, fumaça do cano de descarga dos ônibus, táxi coletivo parando e saindo. As primeiras horas de um dia sendo outro. O que o aguardava? A vida tinha pressa, flashes, o estudante no ponto de ônibus, o cadeirante na faixa de pedestre, o homem de terno dentro do carro importado, a mulher de saia curta, tantas possibilidades. E ele podia ser todas. Caminhava e girava a cabeça, procurando sentir o que sentiam as pessoas à sua volta. Mistura. Nunca sentira tantos cheiros, tamanha liberdade. Quis sair de si.
Sentiu fome, chegou à rodoviária. Pensou comer alguma coisa antes da viagem. Parou na primeira lanchonete bem próxima à escada rolante, comprou antes um jornal, já que nunca o lia e depois decidiu fazer o mesmo pedido da senhora a sua frente.
- Quero um pão de queijo, café e uma salada de frutas. “Salada de frutas?” Enfim, comeu, até que gostou. Embolou o guardanapo. Pronto. Entrou na fila, comprou sua passagem. Precisava aguardar 45 minutos ainda. E já que não era ninguém, colocou-se a ouvir a conversa de quem estava próximo. Quer lugar melhor para não ser ninguém do que numa rodoviária? Ninguém o conhece, está ali só de passagem e possivelmente ninguém o verá novamente. E foi durante um tempo a mãe com o filho no colo, o homem sóbrio solitário, os rapazes que riam de alguma coisa enquanto fumavam. O tempo passou rápido. O dia era leve.
8:45. Desceu as escadas e foi até a plataforma indicada no bilhete. O ônibus estacionou. Foi o primeiro a entrar, buscou a sua poltrona, 13, colocou a mochila entre as pernas. Não ligou o MP4, quis ver e ouvir outras coisas, outras verdades, deixar de ser quem era. Observava cada um que entrava. Sentou próximo à janela. Quem seria sua companhia de viagem? Uma senhora gorda, de ancas largas, aproximou, vistoriou de perto o número da poltrona. “Não, não, não”. Passou. O homem baixo, de bigode, que usava um terno gasto e sujo, rumou para o fundo do ônibus. “Se eu fosse ele, certamente não teria esposa. Nenhum homem que tem uma, anda assim.” Uma mulher com três crianças, entalou entre as poltronas. “Ai que berreiro, Deus me livre” Deixou cair um pacote na cadeira ao seu lado. – Desculpa! Passou a mão no pacote e nos filhos, continuou pelo corredor. Sentou três poltronas após a sua. Um vendedor de água, gritava, chamou sua atenção para fora. “E se fosse vendedor de água? Que tipo de pensamento teria, o que comeria aos domingos? Quantas mulheres já teria comido?” Sorriu dos próprios pensamentos, surpreendeu-se por ter alguém sentado ao seu lado. Uma moça pequena, cabelos pretos e ralos, olhos grandes, boca pequena, pele clara. Leve feito pássaro recém pousado ali.
- Bom dia!
Não era assim, nunca puxaria conversa, mas como se propôs ser outro...
- Bom dia, ela respondeu quase engolindo as palavras.
Sentiu-se confortável para observar a moça displicentemente. Cara dura. Diante dela e com ela assistindo a tudo. Um voyeur às avessas. Sentiu prazer nisto. Desceu o olhar pelo pescoço a mostra, um pingente em forma de gota e o pequeno decote. O vestido decente, claro, rente ao corpo, até os joelhos. Nenhuma sobra, parece ter sido feito pra ela. “Roupas daquele tamanho não deve ser nada fácil encontrar”. Refez o caminho, calmamente. Encontrou os olhos dela estatelados, interrogativos. “Decerto tenta pensar quem eu sou” Insistiu no olhar. Nunca fizera isto antes. Sentiu-se forte, viril até.
- Está calor, não é mesmo? Ela disse envergonhada. Preferiu não responder, assim o constrangimento dela aumentaria. “Não baixo a guarda e retiro as suas”. Pensou.
- Qual o seu nome?
- Nidinha. Ela respondeu ainda mais aflita, contorcendo o pingente entre os dedos da mão direita. Ele gostou, gostou muito do nome no diminutivo. Quantos nomes poderiam ter aquele apelido. Era uma boa idéia. Um nome que não é o verdadeiro nome. “E o seu?” É claro que esta seria a próxima pergunta. Não conseguia pensar em um nome que não fosse o que tinha. Resolveu não dar tempo para que perguntasse o seu. Seria assim, ela viajaria ao lado de alguém sem nome.
Nidinha olhava para ele aflita, como que pedindo socorro. Puxou a mala que estava no chão, com os pés. Ele se ofereceu para ajudar.
- Quer que eu coloque a bolsa no bagageiro?
- Se não for incômodo.
- Não, não é. “Como assim não, não é?” Riu de si mesmo, ou melhor, riu desse outro. Direto, sem escrúpulos, mas quase cavalheiro. Levantou. Ficou de frente para ela, passou bem devagar. Endireitou a postura para que parecesse mais forte. Ao voltar, deixou suas pernas encostarem nas dela. Não pediu desculpas. Sentou. Levantou o suporte de braço, que dividia as poltronas. Viu que a moça ficou incomodada. A pequena recostou-se procurando por uma melhor posição. Resolveu, ousar um pouco mais. Deu um leve tapinha na perna esquerda da moça:
- Quer ir na janela?
- Não obrigada, não gosto de janela.
Gostou da idéia de não gostar de janela. Camaleou-se:
- Eu também não, mas como não tinha nenhum outro lugar vago...
- Ah..
- Você vai até Piranga, ou desce antes?
-Até Piranga.
-Ah..
Silêncio. Ambos se olharam e do pouco que ele viu gostou. Mas não da moça exatamente. Gostou da idéia de ser outro e poder dizer ou fazer o que bem quisesse.
- Você mora em Piranga?
- Não, estou indo visitar uma tia que adoeceu de repente.
- Puxa, que chato, sinto muito.
- Eu também.
- E é grave?
- Infelizmente sim. Reforçou a entonação ao dizer infelizmente, viu o peito da garota se encher de ar, o pingente subiu e desceu docemente, viu que ela se apiedara dele. Emendou logo:
- É dengue.
- Dengue?
- Hemorrágica... riu por dentro.
- Meu Deus, que horror. Coitada da sua tia.
- Coitada da minha família também. É uma tia muito querida sabe? Mas infelizmente ela e minha mãe brigaram quando eu era bem novo. Mudei de Piranga e nunca mais voltei.
- Nossa, como é triste.
- É de doer. Eu sempre quis conhecer a minha família.
As idéias surgiam aos borbulhões em sua cabeça. Quanto mais atenção a moça lhe dava, mais prazer sentia e mais vontade de contar com detalhes a sua trágica e nova vida. A mãe que fora rejeitada pela família, por ser mãe solteira, ele que não conhecera o pai e que fora criado longe de todos, o pedido da mãe antes de morrer para que procurasse os parentes.
- E sua mãe morreu de quê?
- Leucemia. E desde então eu estou sozinho...
E como verdade acaba sendo o tanto de certeza com que se conta um fato, a verdade de sua nova vida foi surgindo enquanto a viagem prosseguia.
- E você não tem receio sobre como a sua família vai lhe receber?
- Na verdade tenho, mas é tão importante pra minha mãe, ou melhor, era né. E acho que é isso que eu preciso fazer. Conhecer a minha família, defender a imagem da minha mãe. Olha que mãe melhor, eu não podia ter tido.
Cheque mate, estava feito. Nidinha, estava entregue, queria cuidar dele, ofereceu biscoito recheado de chocolate e ele comeu, comeu e detestava chocolate. Mas gostava dessa moça toda dada, crédula, ingênua.
- Você já me contou a sua vida inteira e ...
- Inteirinha. Repetiu olhando-a de cima a baixo.
- E eu nem sei o seu nome.
Pronto. De novo. Agora não tem jeito, preciso ter um novo nome. Resolveu brincar com ela.
- Eu lhe dou um presente se você acertar.
- Como assim, acertar o seu nome? Impossível.
- Não é não. Meu nome é muito comum e todos falam que o meu nome é a minha cara.
Esperou que ela o batizasse.
- Olha, não vai rir de mim heim, eu acho que é João.
- João? Tentou se imaginar João, gostou. Nome simples, comum, forte.
- Não falei que ia acertar?
-Você está brincando...Não acredito que é isso mesmo.
- Quer que eu lhe mostre meu RG?
- Não, claro que não. Respondeu sorrindo. É que é difícil de acreditar.
“Ótimo.Mas é claro que você acreditaria.” Afinal se vê sempre aquilo que se acredita.
- Pois acredite, minha mãe escolheu esse nome em homenagem ao meu avô. Adorou a sua própria resposta e ainda aumentou sua família com mais um membro. Se continuasse assim até o final da viagem teria uma família enorme.
- Qual é o nome da sua tia?
- Nenêga.
E quem não tem uma parenta chamada nenêga? E além do que, era a forma camaleônica de nome que é, e não é.
- Nenêga. Ela repetiu. Eu conheço pelo menos dez nenêga em Piranga.
Sentiu o perigo, ela farejava, buscava mais respostas que ele não tivera tempo para pensar.
- Onde ela mora?
“Ai, merda”
- Não sei bem, ela está no hospital, vou visitá-la.
Ele precisava freiá-la. Caso contrário poderia ser descoberto e a viagem seria desagradável, quando mal iniciava seu único dia de uma nova vida. Pegou o pingente da moça. Segurou-o entre os dedos. Fingiu interesse pela bijuteria. A moça assustou-se com seu comportamento.
- Bem, até agora estou só eu falando de mim, fale um pouquinho de você...
Soltou o pingente, deixou Nidinha livre para falar de si. Árvores, carros passando, a paisagem já modificara, distante do centro de BH, longe de quem era. À medida que o ônibus seguia, camaleonizava. Feito a paisagem de fora. O tom de terra vermelha, vindo das mineradoras, cobria toda a BR e as plantas. Sentia-se mais ele mesmo, por mais estranho que fosse. Era plástico, elástico, flexível, mutante. Cada vez que Nidinha terminava um assunto ele arrumava uma forma de aproximar dela. De tal jeito que ela já não fazia interrupções, de um assunto pulava para outro, contava detalhes da cidade e dela mesma ininterruptamente.
Parada para lanche, em Lafaiete. Desceu primeiro, ela disse que viria depois. “Que seja, assim posso pensar mais algumas coisas”. Resolveu seguir o primeiro passageiro à sua frente, que também saia pelo corredor. Era o homem de bigode e terno gasto. Sentou próximo à sua mesa, atentou o ouvido para poder fazer o mesmo pedido.
- Uma dose de conhaque. Bebeu à mesma maneira, de um gole só. Enquanto esperava o seu pedido, bebeu a segunda dose. “Que merda, escolho logo um alcoólatra”. Não tinha o costume sendo o outro de antes, de beber, mas na sua vida nova, como João bebia e adorava conhaque. Chegou seu pedido: Uma lasca de torresmo, peludo, gordurento. Sentiu náusea. Mas precisava esquecer antigos hábitos. “E não é que é bom?” A gordura envolveu sua boca, escorreu no canto direito. Limpou com o canto do braço. Sentiu-se leve, já fazia planos de mais um dia sendo João. Emendaria logo a sexta feira e retornaria na segunda para o trabalho. Até lá, veria que rumo daria a doença da tia. “O quê, mais um conhaque?” Bebeu o terceiro, levantou, foi ao banheiro. Usou o mictório, lavou a boca e o rosto. Procurou papel toalha para secar as mãos. Não encontrou, secou-as na calça mesmo. Viu-se no espelho, quase não se reconheceu. Gostava de ser João, tinha uma tia doente, não gostava de janelas, nem palavras cruzadas, adorava biscoitos de chocolate, achava torresmo irresistível e era alcoólatra.
Sentiu vertigens. Voltou para o ônibus, lembrou que não inventara nenhuma história, mas já nem conseguia. Queria dormir. Nidinha não estava na poltrona. Sentou próximo à janela fechou os olhos, sonolento. Não tinha vontade de conversar, precisava dormir. O ônibus chacoalhou ao ser ligado, seu estômago revirou um pouco, o sonho era insuportável, as pálpebras eram forçadas para baixo. Dormiu. Dormiu todo restante da viagem.
Acordou atordoado. O ônibus estava parado. Escutou Nidinha falando:
- Coitado.
Outra voz de mulher dizia:
- Dengue hemorrágica? Meu Deus...
Sonhava, ou Nidinha falava com ele enquanto dormia? Olhou para fora do ônibus. Algumas pessoas andavam na plataforma carregando bagagens. O motorista e o trocador estavam lá fora. “Alguma parada ou já era Piranga?” Sentia-se tonto, enjoado. Olhou para o lado, procurando por Nidinha. A poltrona estava vazia. Algumas pessoas estavam de pé no corredor, todas olhavam para ele, como quem assiste a um filme. Não reconheceu ninguém, como sendo passageiro do ônibus. Um senhor grisalho disse:
-Ele acordou.
Parecia que sua nova vida estava sendo narrada. Ouviu uma outra voz:
- Nidinha, ele acordou.
Nidinha surgiu do meio do grupo, estacionado no corredor. Ela aproximou dele com os olhos marejados.
- Nidinha? Você está chorando?
- João, qual é o nome da sua tia Nenêga?
- O quê?
- Não sabia o que responder assim pego de surpresa.
- João a sua tia chama Efigênia?
- É...a minha tia chama Efigênia.
- Nossa, que triste... ecoou em cada boca do grupo.
- Ai meu Deus. Nidinha disse, levando a mão ao pingente.
Não conseguia entender o que acontecia.
- Chegamos em Piranga?
- Chegamos, calma João, tente ficar calmo.
- Eu estou calmo, só bebi um pouco, você sabe, estou um pouco nervoso por causa daquela história que eu lhe contei.
- Sim, claro.
Olhar de compreensão. Ele pode quase jurar que viu aprovação dela, por ter bebido.
- Só bebendo mesmo...
- João...
- O quê, o quê está acontecendo Nidinha?
- Eu não tenho uma boa notícia.
- Como assim?
- João, esse aqui é o meu pai, a minha tia, meus primos...
“Ai minha santa paciência, deixa eu sair logo daqui, já nem sei se quero ser João”.
- Eles vieram me buscar aqui na rodoviária. Daí entendi o que aconteceu.
“Puta merda, ela entendeu a minha mentira e já vai a forra”.
- É que a Efigênia, que é nossa vizinha, estava no hospital com dengue hemorrágica, eu não sabia...
- O quê?
- É, a sua tia Nenêga é nossa vizinha.
-É?
- Ela morreu João, agora pela manhã. Sinto muito.
- ....
João pegou sua mochila entre as pernas. Tentou ficar de pé. Bateu a cabeça no bagageiro. Que dor insuportável. Os olhos molharam de lágrimas. Continuava escutando os narradores de sua nova história:
- Coitado, mal conheceu a tia e está tão sentido.
- Agora, ta órfão de tudo.
“Puta merda, mal sou outro e já perco um parente.”
A cada passo no corredor apertado recebia um abraço e um sinto muito de algum parente da Nidinha.
- Coragem meu filho!
- Deus quis assim.
- A Efigênia dizia mesmo de um sobrinho que nunca mais viu. Ela esperava por você, sabia?
Do corredor apertado do ônibus, seguira outro ainda maior. A notícia pela cidade de Piranga, curiosos, café na casa dos parentes, a casa vazia da tia adotada, velório e enterro. Fausto nunca mais voltou para a pousada em Belo Horizonte. Ou melhor, João nem mais se lembrava que um dia fora Fausto. Já não era, era outro.
Chá de folhas amargas para alongar a vida
Aprendi a lidar com o frio tardiamente. E não o sinto, por qualquer ventinho. Recolho as roupas do varal usando uma leve camiseta, enquanto o “termômetro” anuncia 12º , rego as verduras no quintal, desfaço o pequeno acúmulo de gelo das folhas, ainda de camisola, enquanto o dia apenas decola e o vento se encarrega de misturar as folhas da espirradeira com as do pé-de-goiaba e do manacá-de-cheiro. Sei que o meu vizinho pensa, essa mulher é doida, essa mulher é doida, não demora adoecer. Mas não sou doida e nem adoeço, nem mesmo resfrio, e sei bem o por quê.
Meu vizinho, este que mora do lado, sempre esperou a doença, antevê a sufrida desde o início da vida. Marcado por sarampo, icterícia, rubéola, caxumba e outros tantos. Foi competente o suficiente para juntar todas em seu pequeno corpo. Por isso, fez seguro, reserva no banco, para algum tipo de cirurgia que o convênio médico não possa cobrir. Telefones úteis na geladeira, bombeiro, unimed, cardiologista, 191, pneumologista e, outros tantos de números em arial, fonte 12, numa folha A4 cheinha.... Senha do cartão? Deixou com o sobrinho, em caso de necessidade. Fez até um kit hospital, pijama, pente, escova de dente, creme dental, toalha, roupão e pantufa verde, para acalmar os pés e as enfermeiras sempre temperamentais.
Comeu sempre às mesmas horas, respeitando a orientação dos nutricionistas. Chá de folhas amargas, com poder de alongar a vida, logo pela manhã, desjejum completo com frutas e fibras, almoço sempre fresco, do dia, sem conservantes. No final da tarde, caminhada, às mesmas horas, quando o sol já se põe, mas por precaução, uma boa dose de protetor solar 50, mas ele caminha sempre do mesmo lado da calçada, e não vê que o pequeno João cresceu e já saiu de casa, que na última terça feira teve uma correção de formigas-cortadeiras que atacaram a casa da dona Terezinha e lhe custou muitos pés de couve, que as palmas brancas e amarelas continuam nascendo todos os anos. Ao voltar da caminhada, banho morno, escalda pés e para o jantar apenas sopa leve, e de novo o chá de folhas amargas.
E, ele sempre me diz, enquanto rego o jardim, apontado com aqueles dedos finos, coloque uma blusa, um agasalho, cuidado com a pneumonia. Enquanto eu fico pensando, pra quê um nariz tão fino e longo? Se não serve para cheirar nada? E ele continua ralhando até eu escutar o barulho do seu portão sendo aberto e a sua voz sumindo ao entrar em casa: Mulher louca, qualquer dia adoece e ainda me dá trabalho.... E a vozinha dele vai sumindo para dentro da casa, enquanto me distraio com a mangueira a ponto de deixar a água escorrer por minhas pernas e pés. E, eu penso: Esse tipo de frio não mata, o que mata é o frio de dentro, esse que já lhe congela os ossos. Mas não digo. Não por educação, mas para não desperdiçar a alegria do início do dia.
E, não é que de tanto prevenir, antecipando a morte, meu vizinho não a viu sorrateira, entrar pela porta da cozinha e lhe pegar pelos flancos, bebendo o seu chá de folhas amargas? Pronto. Cumpriu a sina. Atingiu seu desejo. Parece até que o vejo dizendo: Viu não falei, por isso me preveni tanto, um dia ela me alcançaria... Não teve tempo de utilizar o helicóptero diferencial oferecido e cobrado pelo convênio médico e nunca utilizado, não teve tempo da empregada ligar, já treinada por ele, para ligar para emergências e dizer: Só estou testando o tempo que gasto para entrar em contato com vocês. Os números dos telefones de urgência ficaram na geladeira, até o carregador do depósito limpar as mãos nele e embolar num canto, o kit para o hospital foi doado para um asilo e a reserva para cirurgia, até hoje paga as viagens para o exterior do sobrinho, que não tem medo da vida.
O vizinho? Coitado, morreu por não se prevenir para a vida. Teve um velório escasso de gente e com sobra de tempo. E, o pior, é que não recebeu visitas no último inverno por conta da gripe suína, não falou ao telefone em dias de chuva, por conta de raios, nunca utilizou a piscina já pronta ao comprar a casa, no fundo da área de lazer desutilizada, por conta dos micróbios, não adoçou o chá de folhas amargas com mel porque doença também gosta de doce, não fez nenhuma das receitas gordurosas da Ana Maria Braga por conta do colesterol ... e morreu.
E eu, às vezes me pergunto, no auge dos meus 98 anos, será que a morte esquece de alguém? Mas o pensamento passa rápido, porque a vida me chama em pluma no alto da espirradeira que já floresce e canta um canto novo, e sei que aquele pássaro é filhote da ninhada do mesmo que esteve por aqui na primavera passada. E continuo a regar as plantas de camiseta, não temo este tipo de frio que a metereologia anuncia, só temo três coisas: não usufruir da minha vida, não curtir as mudanças do dia, e morrer de frio de dentro, deste tipo que ninguém vê, mas pressente, quando lhe apontam o dedo em riste, simplesmente, porque se é só alegria. Tenho medo mesmo, desse tipo de gente.
Meu vizinho, este que mora do lado, sempre esperou a doença, antevê a sufrida desde o início da vida. Marcado por sarampo, icterícia, rubéola, caxumba e outros tantos. Foi competente o suficiente para juntar todas em seu pequeno corpo. Por isso, fez seguro, reserva no banco, para algum tipo de cirurgia que o convênio médico não possa cobrir. Telefones úteis na geladeira, bombeiro, unimed, cardiologista, 191, pneumologista e, outros tantos de números em arial, fonte 12, numa folha A4 cheinha.... Senha do cartão? Deixou com o sobrinho, em caso de necessidade. Fez até um kit hospital, pijama, pente, escova de dente, creme dental, toalha, roupão e pantufa verde, para acalmar os pés e as enfermeiras sempre temperamentais.
Comeu sempre às mesmas horas, respeitando a orientação dos nutricionistas. Chá de folhas amargas, com poder de alongar a vida, logo pela manhã, desjejum completo com frutas e fibras, almoço sempre fresco, do dia, sem conservantes. No final da tarde, caminhada, às mesmas horas, quando o sol já se põe, mas por precaução, uma boa dose de protetor solar 50, mas ele caminha sempre do mesmo lado da calçada, e não vê que o pequeno João cresceu e já saiu de casa, que na última terça feira teve uma correção de formigas-cortadeiras que atacaram a casa da dona Terezinha e lhe custou muitos pés de couve, que as palmas brancas e amarelas continuam nascendo todos os anos. Ao voltar da caminhada, banho morno, escalda pés e para o jantar apenas sopa leve, e de novo o chá de folhas amargas.
E, ele sempre me diz, enquanto rego o jardim, apontado com aqueles dedos finos, coloque uma blusa, um agasalho, cuidado com a pneumonia. Enquanto eu fico pensando, pra quê um nariz tão fino e longo? Se não serve para cheirar nada? E ele continua ralhando até eu escutar o barulho do seu portão sendo aberto e a sua voz sumindo ao entrar em casa: Mulher louca, qualquer dia adoece e ainda me dá trabalho.... E a vozinha dele vai sumindo para dentro da casa, enquanto me distraio com a mangueira a ponto de deixar a água escorrer por minhas pernas e pés. E, eu penso: Esse tipo de frio não mata, o que mata é o frio de dentro, esse que já lhe congela os ossos. Mas não digo. Não por educação, mas para não desperdiçar a alegria do início do dia.
E, não é que de tanto prevenir, antecipando a morte, meu vizinho não a viu sorrateira, entrar pela porta da cozinha e lhe pegar pelos flancos, bebendo o seu chá de folhas amargas? Pronto. Cumpriu a sina. Atingiu seu desejo. Parece até que o vejo dizendo: Viu não falei, por isso me preveni tanto, um dia ela me alcançaria... Não teve tempo de utilizar o helicóptero diferencial oferecido e cobrado pelo convênio médico e nunca utilizado, não teve tempo da empregada ligar, já treinada por ele, para ligar para emergências e dizer: Só estou testando o tempo que gasto para entrar em contato com vocês. Os números dos telefones de urgência ficaram na geladeira, até o carregador do depósito limpar as mãos nele e embolar num canto, o kit para o hospital foi doado para um asilo e a reserva para cirurgia, até hoje paga as viagens para o exterior do sobrinho, que não tem medo da vida.
O vizinho? Coitado, morreu por não se prevenir para a vida. Teve um velório escasso de gente e com sobra de tempo. E, o pior, é que não recebeu visitas no último inverno por conta da gripe suína, não falou ao telefone em dias de chuva, por conta de raios, nunca utilizou a piscina já pronta ao comprar a casa, no fundo da área de lazer desutilizada, por conta dos micróbios, não adoçou o chá de folhas amargas com mel porque doença também gosta de doce, não fez nenhuma das receitas gordurosas da Ana Maria Braga por conta do colesterol ... e morreu.
E eu, às vezes me pergunto, no auge dos meus 98 anos, será que a morte esquece de alguém? Mas o pensamento passa rápido, porque a vida me chama em pluma no alto da espirradeira que já floresce e canta um canto novo, e sei que aquele pássaro é filhote da ninhada do mesmo que esteve por aqui na primavera passada. E continuo a regar as plantas de camiseta, não temo este tipo de frio que a metereologia anuncia, só temo três coisas: não usufruir da minha vida, não curtir as mudanças do dia, e morrer de frio de dentro, deste tipo que ninguém vê, mas pressente, quando lhe apontam o dedo em riste, simplesmente, porque se é só alegria. Tenho medo mesmo, desse tipo de gente.
terça-feira, 1 de junho de 2010
Fala Comigo como a Chuva *
Ela ficou parada na minúscula área de serviço. As roupas estavam quase secas. E, as que ainda não, iriam para a secadora. O dia estava no fim, exatamente naquele entremeio de não ser tarde, nem noite. Entardecia.
Adelaide encostou os cotovelos no parapeito e apoiou o queixo entre as mãos. Respirou fundo, como só os tristes respiram. Sua tristeza era incomensurável, inalterável, colossal. Buscou recursos através dos médicos, psicólogos, anti depressivos, chás e em fontes alternativas cartomante, yoga e reiki. Balela. A tristeza permanecia inabalável.
Do lado de fora, diante dela, começou uma chuva fina, mansa, cor de ouro, enquanto ela pensava em si mesma, turbilhão de idéias convergiam para um mesmo ponto, sua permanente dor.
De repente, um pássaro com máscaras agarrou-se na tela que tinha a função de protegê-la do mundo de fora. Assustou-se com aquela pequena ave cinza chumbo de peito amarelo, olhos brancos, faixa preta nos olhos. Procurou na memória o nome, qual era mesmo?...Bem-te-vi. Há tempos não via um. E agora estava ali pousado, tão próximo, a se esconder da chuva. Inusitado. Mas também não é comum ser tão triste. Adelaide tentou passar os dedos pelas frestas em sua direção, ele voou arisco, livre, como a dizer sou dono de mim. Deixou um som de asas e um rastro furando a chuva amarela. Vazio. Era tão lindo, de doer. Sem entender teve uma vontade de ... de tantas coisas, que não soube nem mesmo definir. Concentrou-se no pássaro, quis segui-lo mais que apenas com os olhos, esforçou-se a ponto de forçar o seu rosto contra a tela, acompanhou o vôo e o viu sumir em uma árvore próxima ao BH Shopping. Ah como queria ter feito aquele vôo sob a chuva.
Lembrou de uma fração do passado, voltava da escola, a chuva a surpreendeu ainda no meio do caminho para casa. Colocou o livro dentro da mochila e continuou caminhando. Mesmo que os pingos grossos teimassem em lhe fechar os olhos. Outras crianças também determinadas faziam o mesmo caminho e iniciaram o eterno pular nas poças. Como era divertido pular em poças. Riu da lembrança e riu também do pito levado em casa, banho quente, chá e sopa. Até xingo era bom, era uma mistura de preocupação com carinho. Isso quando, no meio de um deles, não surgiam risos, até doer a barriga e a frase da mãe: - Ai minha filha, já nem agüento mais! Mas, nem agüento mais ser tão feliz. Assim era a sua mãe divertida, leve, colo macio. Nunca quis sair daquela pequena cidade, nada de sonhos altos, só aqueles que parecem já estar aterrissados. Família grande, mesa farta, colchas limpas e cócegas no marido. Do seu quarto escutava os pais conversando, varando a noite. Não entendia as palavras, mas em meio a uma e outra - risos. Esta era a forma de sua mãe ser feliz.
Quando mesmo deixara de ser feliz? Não sabia. Mas tinha uma gana de ir para a capital. Estudar, formar, ser alguém. República de estudantes, muitos trabalhos para chegar ao final do curso de Administração. Pequenas perspectivas, comuns aos recém formados. Até que conheceu o marido, executivo, bem sucedido e todo o ar de seremos felizes para sempre, por ele representado. Casamento, a proposta de largar o emprego, a constatação de não ter feito uma boa escolha. Tentou retornar, o marido não admitiu que fosse para a mesma empresa. E, na verdade, administraria o quê? Trabalharia para os outros? Não. Mulher minha, não. Por fim, Adelaide tentou de tudo para se libertar - Herbalife, Natura, Avon, para conhecer pessoas, ampliar o seu pequeno mundo estacionado no sétimo andar, do Belvedere, 153 m2, 4 quartos, 5 vagas na garagem e vista definitiva quitada. Som de asas e um rastro furando a chuva amarela.
A chuva aumentara, lá embaixo as pessoas ziguezagueavam entre os carros. Buzinas. Um semáfaro estragara. E Adelaide, que há tempo, não via nem chuva, resolveu assistir. Vistoriava cada detalhe. Pequeno acúmulo de água se formava próximos ao meio fio, de cada lado da avenida. Pessoas com trajes esportivos corriam por outros motivos. Esqueceu-se completamente da tristeza e agora era só olhos a contemplar a vida.
E por mais uma vez, o pássaro voltou e pousou na tela. Surpreendente. Estava de novo ali, pousado, sacudindo as penas molhadas de chuva. Pequenas gotas atingiram, em cheio, o rosto de Adelaide. Ela riu, como a mãe ria. Fechou os olhos e sentiu que o pássaro trouxera consigo o cheiro da chuva. E esta, era completa, cheiro, vento e gotas. Adelaide sentiu-se de novo criança, estava no quintal, debaixo do pé de abacate. A mãe encharcada ao seu lado: - Veja filha, ficamos molhadas, ai meu Deus, que cabeça a minha! Adelaide, enrolada em uma toalha era carregada pra dentro de casa.
- Olha mãe, olha como a chuva é bonita.
- É linda, filha. Agora precisamos entrar.
- Espera, espera mãe, deixa eu só falar uma coisa pra chuva...
Faz-se o barulho de chave girando na porta da sala. Adelaide abre os olhos. Sobressalto. É o marido chegando. A porta se abre. Ele entra. Coloca o notebook no aparador. A chave, no chaveiro. Alarga o nó da gravata.
- Adelaide?
Ela não quer responder.
- A de laide...
Não saberia o que falar. Fechou os olhos. Pássaro apertado entre as mãos. Desejou, desejou muito falar para o marido:
- Fala comigo, como a chuva...
Ele a encontrou na área de serviço, muda feito planta em dia de chuva. E dentro dela não tinham palavras, apenas um som de asas e um rastro furando a chuva amarela.
*Nome do texto inspirado na peça representada pela Cia de Teatro Adulto. Escutei a matéria pela Rádio Guarani em um congestionamento enorme por conta da reforma do BH Shopping.
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Adélia Carvalho na Bienal
Notícias da Bienal 2010
A Bienal 2010, no que refere a PALAVRA escrita, cantada e falada, oferece de tudo um pouco:
Livros os mais variados, autores vivinhos andando ao seu lado, frozen, café de qualidade, cerveja gelada para adeptos, bom papo, curiosos, desavisados, amantes da boa literatura.
E, não é, que o meu marido conseguiu encontrar, bem no cantinho do evento, um sanduíche de hambúrguer duro de doer os dentes? Creio que por descuido nosso e do buffet que dedica seu tempo a eventos.
Bordas duras de lado, dentre tantos outros atrativos gustativos de qualidade – estão os livros: Cadernos de Literatura sobre Clarice Lispector a 15,00 reais, Raduan Hassan por 12,00, Adélia Prado acabou, tamanha foi a disputa, mas chegará mais nesta semana. Grandes filósofos pela bagatela de 4,00 reais, livros infantis e poéticos de lavar a alma da Coleção Miguilim por apenas 4,00 reais.
A Bienal, também existe, para provar que livro não é caro, basta saber procurar. Já que sou compradora experiente de livros, recomendo sacola grande, paciência, roupa confortável e boa companhia. Sente no chão, se preciso for e separe os seus livros, não compre no primeiro stand que entrar. Caminhe até o miolo do evento, não tenha medo das bancas com livros diversos, certamente encontrará preciosidades. Livros acima de 20,00? Você quer mesmo gastar!
No sábado, dia 15, encontrei a Adélia Carvalho por lá. Magnífica, em seu vestido de poá e barra floral. Flores vivinhas, brotando idéias e fazendo a cabeça da gente seguir a sua voz, enquanto lia seus textos. Se você ainda não teve o prazer de conhecê-la, acesse o site http://adelia.carvalho.zip.net/ e confira. A encontrei sentada, no meio da Arena, dizendo: “Tudo aconteceu precisamente dessa forma...” Se você tem algum amigo que partiu antes do tempo, surpreenderá com o final dessa história!
Entre no site da Bienal www.bienaldolivrominas.com.br e escolha os eventos que deseja participar: Lançamento de livros, contação de histórias, oficinas de arte e o fenomenal contato com as editoras. Para você que tem palavras guardadas e deseja compartilhá-la com outras pessoas vale a dica, procure a Usina de Letras.
Confira algumas fotos que comprovam que tudo o que disse é verdade. Convide seus amigos, inimigos, se tiver – já que literatura acalma os ânimos e aprimora as pessoas. Mas não se esqueça de convidar o pedidor-de-livros-emprestados, ajude-o a comprar e compartilhar livros com você!
Bienal, o maravilhoso mundo dos livros, onde tudo é possível, até montar a sua biblioteca. Mas fica o alerta: todas as possibilidades terminam dia 23 de maio às 22 horas.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Frigideira e Azeite-extra-virgem
Olvidar-me.
Não sei se é recordar ou esquecer.
E, acaba sendo o mesmo.
Porque, saber que esqueceu
é uma forma de lembrar.
A empregada agachara para procurar a frigideira dentro do armário, debaixo da pia. Ficou de quatro, sem atentar-se para o fato. Estava sozinha mesmo, os patrões haviam saído. Tateou de um lado a outro. Foi adivinhando as panelas pela forma e textura. Segurou pelo cabo a frigideira. “Achei”. Porém, bastou pegar o cabo – veio a palavra em sua cabeça: FRIGIDEIRA. Olhou para a panela redonda, de laterais baixas, como se visse uma pela primeira vez. Mas, uma dessa forma, era de fato, a primeira. Fez a ponte: frigideira-frígida. Lera uma matéria inteirinha sobre frigidez, no último sábado, no salão da Cota. “Coisa triste, para uma mulher pobre” pensou. “Imagina, além de pobre, ser frígida?”. Essa tal doença, devia é ser coisa de rico, que tem outras compensações.
Colocou o caderninho de receitas sobre a mesa, a panela sobre a trempe, e antes de acendê-la, observou uma pequena mancha de gordura. “Preguiçosa”. Pensou sobre a patroa. Assanho-lhe as idéias. “Nem mesmo lavou a panela direito”. Ela? Ela nunca fora preguiçosa, nem nunca lhe faltou esforços para ter e dar prazer. Lembrou dos namorados, do ex marido, aquele tal, sem vergonha, tocador de viola, que não mantinha a braguilha fechada. Por conta disso, resolveu atualizar-se. Separou. Para não ter que dividir homem com ninguém. “Homem é feito pirulito, não se dividi.” Riu de si mesma. Mas depois, já livre de aborrecimentos, foi se tornando tão difícil... Chegava exausta do trabalho e não tinha ânimo para descer para o Verdão. "Baile? Com aqueles aposentados que podiam acordar a qualquer hora no outro dia?" Pois então, foi se acostumando a deitar cedo, às vezes dormir, às vezes não. Sentia falta de ter alguém ali ao seu lado, mas não queria homem desgovernado. O último namorado a deixara a ver éguas e cabras pela fresta. É, nada acontecera. E ela pensando “que homem respeitador”. E, além disso, engomou muita camisa, passou outras tantas e cozinhou rabada, costela de boi e de porco e a tal couve cortada a faca de doer os dedos. Por conta de tantos desencontros resolveu ficar só. Soma de anos desde então.
O telefone tocou. Largou os afazeres da cozinha e subiu as escadas correndo. O único telefone da casa, ficava no quarto, na mezinha de cabeceira da patroa.
- Alô!
- Cida? Sou eu, Lúcia.
- Oi, dona Lúcia.
- Olha Cida, eu e o Ernesto não vamos almoçar em casa, vamos chegar só depois das cinco. Então não precisa preocupar com a gente.
- Sim senhora, dona Lúcia.
- Faça alguma coisa para você comer, lave o banheiro do meu quarto e passa a roupa. Pode sair mais cedo hoje, viu?
- Obrigada, dona Lúcia.
Desligou o telefone. Estava a colocar os bofes para fora, tamanha a rapidez investida na escada. Sentou na cama dos patrões. “Como é macia”. Levantou e sentou com mais força. O colchão brincou com ela, para cima e para baixo. Gostou da brincadeira.Deitou. Esparramou-se toda sobre a cama. Enrolou-se no edredom branco, de flores rosas e folhas verdes. “Que cheiro bom”. Desejou deitar numa cama desse tipo, com um homem espadaúdo, forte, decidido. Já que a patroa não retornaria, refestelou-se.
Acordou assustada, com um barulho na porta da sala. Afinou os ouvidos. Nada. Alinhou rapidamente as cobertas. “Será que os patrões chegaram?” Desceu. A porta de entrada fechada. E a Belinha pulando na porta, tentava entrar. “Ah, só me faltava essa, até cachorra me acorda!” Confirmou as horas no reloginho de enfeite dentro da cristaleira. 11:45. “Ah, dormira pouco.” Foi até a área, pegou o balde, desinfetante, pano de chão e o rodo, subiu para a suíte. Era cedo ainda. Tinha um bocado de tempo a seu favor. Entrou no banheiro. Olhou todos os bibelôs da patroa. “Quanto perfume do estrangeiro!” Abriu a torneira da banheira. “Lavar? Lavo depois”. Tirou a blusinha azul marinho e a bermuda. Jogou para o alto. Desfilou de calcinha e sutiã em frente ao grande espelho do banheiro. Gostou do que viu. “É, ainda dou um bom caldo!”.
- Ernesto, Ernesto, traga os meus sais de banho?
Gritou, imitando a voz da patroa. Despiu-se. Arremessou a roupa íntima na cama dos patrões. Sempre quisera fazer isso. Colocou o pé direito dentro da banheira. Um arrepio percorreu todo o corpo. Aumentou a água quente. Entrou devagar. Aproveitando a água que lentamente cobria o seu corpo. “Isso é que é vida.” Pegou o primeiro frasquinho no aparador. Aromatizador de ambiente. “Não, não, isso não.” Sais de banho. “Ótimo.” Derramou sem miséria o pozinho azul que dissolveu na água. “Que cheiro bom”. Tirou os grampos dos cabelos. Arremessou no vaso sanitário. Um a um. Afundou inteiramente na água. Ficou por alguns segundos. “Puxa, estou aqui pouco tempo e já quero ser rica”.
Despejou o xampu importado nas mãos. Esfregou nos cabelos, depois o condicionador. Esfregou a bucha, com sabonete líquido em cada dobra, até sentir a pele arder.
Enxaguou-se. Sem pressa. Secou-se com a toalha do Ernesto, que também jogou sobre a cama. E dispôs a toalha da Lúcia nos cabelos molhados. Procurou algum perfume. Não conseguiu abrir nenhum. “Bem, quem não tem cão, caça com gato.” Pegou o aromatizador de ambiente e apertou debaixo dos braços. O secador sempre ficava debaixo da pia. Depois de desembaraçar bem os cabelos, passou ar quente neles. “Como estão macios”.
Vestiu o roupão da patroa. Desceu. Corpo leve e a cabeça cheia de idéias. “O que comeria?”. Explorou a dispensa e os frus frus de dias de festa: Canela da índia, bacalhau, pistache, azeitonas negras, creme de balsâmico aromatizado com tomate seco, trufas, azeite-extra-virgem...”Azeite-extra-virgem? É este, é este que eu comerei.” Diagnosticou-se. Não era frígida. Ficara virgem aos poucos, à medida que distanciara os homens de si. E como virgem, não conhece homem, já nem sentia falta. “Esquecera-se ou olvidara-se?”
Decidiu. Faria bacalhoada para o seu almoço. Pôs-se a procurar uma receita no caderninho da patroa. Falsa bacalhoada. “Essa não.” Bacalhoada de pobre. “Muito menos”. Bacalhoada a moda da casa. “Hummm.” Bacalhoada da vovó gu. “Sei não” Bacalhoada Divina. “É essa”.
Separou um quilo de bacalhau, um de batatinha, meio de palmito fresco, 2 cebolas, 200gramas de azeitona verde, 1/2 dúzia de ovos cozidos, 1 vidro de azeite extra virgem, alho, limão e pimenta do reino. Colocou o bacalhau de molho, cortou as batatas em rodelas, o palmito e as cebolas. Cozinhou e desfiou o bacalhau. As batatas foram cozidas na mesma água. Bateu a gema dos ovos cozidos no liquidificador junto com alho, o limão, a pimenta do reino e o azeite. Desfiou o bacalhau e alternou em um pirex batata, palmito, azeitona, claras cozidas, cebola, bacalhau e o molho de gemas. Deixou assar, até dourar.
Pegou a frigideira. Ateou-lhe fogo. Deitou-lhe grossas rodelas de cebola roxa, tomate italiano, alho, champignon e alcaparras. Bateu no liquidificador azeitonas negras, sem caroço, para não faltar nada de luxo. Juntou tudo à frigideira. E para terminar verteu um bom tanto de azeite-extra-virgem, puríssimo, português. Dispôs a mesa com prato fino e uma taça de vinho. Bacalhoada e guisado. Comeu. Lambeu os dedos. Lambeu o prato. Fartou-se.
Fez um embrulho com a bacalhoada restante. Numa vasilhinha tapeware da patroa. Levaria para casa para o jantar. Poderia convidar o vizinho, viúvo há poucos meses. Então, resolveu separar uma garrafa de vinho. Prostrou-se na poltrona, para ajudar a digestão. 15:00. Seria apertado, mas daria conta das tarefas. Precisava descansar só um pouquinho. Dormiu o sono dos extasiados, dos satisfeitos e ricos.
Acordou assustada. 16:45. A patroa deveria estar prestes a chegar. Correu para o banheiro. Certificou-se da desordem. Desceu. Colocou a vasilha e o vinho em uma sacola. Teria tempo para trocar de roupa. Voltou ao quarto, tirou o roupão. Escolheu o vestido turquesa, que a patroa comprara em Teresópolis. Sandália de salto prata. Estava linda. “Rico é que tem problema com roupas, uma para cada horário. Pobre não, veste o que achar bonito.”
Desceu as escadas. Deixou tudo como estava. Teve vontade de deixar um bilhete para a patroa:
“Lúcia arrume a bagunça. Lave bem o banheiro do jeito que o Ernesto gosta. Deixe a roupa passada. Bom dia. Dona Cida.”
Mas teve dúvida – deixe, era com “x” ou “ch”? Então, desceu, pegou a sacola. Foi embora, requebrando sobre o salto, um pouco antes da Lúcia e o Ernesto chegarem, com seus convidados para a Páscoa.
Não sei se é recordar ou esquecer.
E, acaba sendo o mesmo.
Porque, saber que esqueceu
é uma forma de lembrar.
A empregada agachara para procurar a frigideira dentro do armário, debaixo da pia. Ficou de quatro, sem atentar-se para o fato. Estava sozinha mesmo, os patrões haviam saído. Tateou de um lado a outro. Foi adivinhando as panelas pela forma e textura. Segurou pelo cabo a frigideira. “Achei”. Porém, bastou pegar o cabo – veio a palavra em sua cabeça: FRIGIDEIRA. Olhou para a panela redonda, de laterais baixas, como se visse uma pela primeira vez. Mas, uma dessa forma, era de fato, a primeira. Fez a ponte: frigideira-frígida. Lera uma matéria inteirinha sobre frigidez, no último sábado, no salão da Cota. “Coisa triste, para uma mulher pobre” pensou. “Imagina, além de pobre, ser frígida?”. Essa tal doença, devia é ser coisa de rico, que tem outras compensações.
Colocou o caderninho de receitas sobre a mesa, a panela sobre a trempe, e antes de acendê-la, observou uma pequena mancha de gordura. “Preguiçosa”. Pensou sobre a patroa. Assanho-lhe as idéias. “Nem mesmo lavou a panela direito”. Ela? Ela nunca fora preguiçosa, nem nunca lhe faltou esforços para ter e dar prazer. Lembrou dos namorados, do ex marido, aquele tal, sem vergonha, tocador de viola, que não mantinha a braguilha fechada. Por conta disso, resolveu atualizar-se. Separou. Para não ter que dividir homem com ninguém. “Homem é feito pirulito, não se dividi.” Riu de si mesma. Mas depois, já livre de aborrecimentos, foi se tornando tão difícil... Chegava exausta do trabalho e não tinha ânimo para descer para o Verdão. "Baile? Com aqueles aposentados que podiam acordar a qualquer hora no outro dia?" Pois então, foi se acostumando a deitar cedo, às vezes dormir, às vezes não. Sentia falta de ter alguém ali ao seu lado, mas não queria homem desgovernado. O último namorado a deixara a ver éguas e cabras pela fresta. É, nada acontecera. E ela pensando “que homem respeitador”. E, além disso, engomou muita camisa, passou outras tantas e cozinhou rabada, costela de boi e de porco e a tal couve cortada a faca de doer os dedos. Por conta de tantos desencontros resolveu ficar só. Soma de anos desde então.
O telefone tocou. Largou os afazeres da cozinha e subiu as escadas correndo. O único telefone da casa, ficava no quarto, na mezinha de cabeceira da patroa.
- Alô!
- Cida? Sou eu, Lúcia.
- Oi, dona Lúcia.
- Olha Cida, eu e o Ernesto não vamos almoçar em casa, vamos chegar só depois das cinco. Então não precisa preocupar com a gente.
- Sim senhora, dona Lúcia.
- Faça alguma coisa para você comer, lave o banheiro do meu quarto e passa a roupa. Pode sair mais cedo hoje, viu?
- Obrigada, dona Lúcia.
Desligou o telefone. Estava a colocar os bofes para fora, tamanha a rapidez investida na escada. Sentou na cama dos patrões. “Como é macia”. Levantou e sentou com mais força. O colchão brincou com ela, para cima e para baixo. Gostou da brincadeira.Deitou. Esparramou-se toda sobre a cama. Enrolou-se no edredom branco, de flores rosas e folhas verdes. “Que cheiro bom”. Desejou deitar numa cama desse tipo, com um homem espadaúdo, forte, decidido. Já que a patroa não retornaria, refestelou-se.
Acordou assustada, com um barulho na porta da sala. Afinou os ouvidos. Nada. Alinhou rapidamente as cobertas. “Será que os patrões chegaram?” Desceu. A porta de entrada fechada. E a Belinha pulando na porta, tentava entrar. “Ah, só me faltava essa, até cachorra me acorda!” Confirmou as horas no reloginho de enfeite dentro da cristaleira. 11:45. “Ah, dormira pouco.” Foi até a área, pegou o balde, desinfetante, pano de chão e o rodo, subiu para a suíte. Era cedo ainda. Tinha um bocado de tempo a seu favor. Entrou no banheiro. Olhou todos os bibelôs da patroa. “Quanto perfume do estrangeiro!” Abriu a torneira da banheira. “Lavar? Lavo depois”. Tirou a blusinha azul marinho e a bermuda. Jogou para o alto. Desfilou de calcinha e sutiã em frente ao grande espelho do banheiro. Gostou do que viu. “É, ainda dou um bom caldo!”.
- Ernesto, Ernesto, traga os meus sais de banho?
Gritou, imitando a voz da patroa. Despiu-se. Arremessou a roupa íntima na cama dos patrões. Sempre quisera fazer isso. Colocou o pé direito dentro da banheira. Um arrepio percorreu todo o corpo. Aumentou a água quente. Entrou devagar. Aproveitando a água que lentamente cobria o seu corpo. “Isso é que é vida.” Pegou o primeiro frasquinho no aparador. Aromatizador de ambiente. “Não, não, isso não.” Sais de banho. “Ótimo.” Derramou sem miséria o pozinho azul que dissolveu na água. “Que cheiro bom”. Tirou os grampos dos cabelos. Arremessou no vaso sanitário. Um a um. Afundou inteiramente na água. Ficou por alguns segundos. “Puxa, estou aqui pouco tempo e já quero ser rica”.
Despejou o xampu importado nas mãos. Esfregou nos cabelos, depois o condicionador. Esfregou a bucha, com sabonete líquido em cada dobra, até sentir a pele arder.
Enxaguou-se. Sem pressa. Secou-se com a toalha do Ernesto, que também jogou sobre a cama. E dispôs a toalha da Lúcia nos cabelos molhados. Procurou algum perfume. Não conseguiu abrir nenhum. “Bem, quem não tem cão, caça com gato.” Pegou o aromatizador de ambiente e apertou debaixo dos braços. O secador sempre ficava debaixo da pia. Depois de desembaraçar bem os cabelos, passou ar quente neles. “Como estão macios”.
Vestiu o roupão da patroa. Desceu. Corpo leve e a cabeça cheia de idéias. “O que comeria?”. Explorou a dispensa e os frus frus de dias de festa: Canela da índia, bacalhau, pistache, azeitonas negras, creme de balsâmico aromatizado com tomate seco, trufas, azeite-extra-virgem...”Azeite-extra-virgem? É este, é este que eu comerei.” Diagnosticou-se. Não era frígida. Ficara virgem aos poucos, à medida que distanciara os homens de si. E como virgem, não conhece homem, já nem sentia falta. “Esquecera-se ou olvidara-se?”
Decidiu. Faria bacalhoada para o seu almoço. Pôs-se a procurar uma receita no caderninho da patroa. Falsa bacalhoada. “Essa não.” Bacalhoada de pobre. “Muito menos”. Bacalhoada a moda da casa. “Hummm.” Bacalhoada da vovó gu. “Sei não” Bacalhoada Divina. “É essa”.
Separou um quilo de bacalhau, um de batatinha, meio de palmito fresco, 2 cebolas, 200gramas de azeitona verde, 1/2 dúzia de ovos cozidos, 1 vidro de azeite extra virgem, alho, limão e pimenta do reino. Colocou o bacalhau de molho, cortou as batatas em rodelas, o palmito e as cebolas. Cozinhou e desfiou o bacalhau. As batatas foram cozidas na mesma água. Bateu a gema dos ovos cozidos no liquidificador junto com alho, o limão, a pimenta do reino e o azeite. Desfiou o bacalhau e alternou em um pirex batata, palmito, azeitona, claras cozidas, cebola, bacalhau e o molho de gemas. Deixou assar, até dourar.
Pegou a frigideira. Ateou-lhe fogo. Deitou-lhe grossas rodelas de cebola roxa, tomate italiano, alho, champignon e alcaparras. Bateu no liquidificador azeitonas negras, sem caroço, para não faltar nada de luxo. Juntou tudo à frigideira. E para terminar verteu um bom tanto de azeite-extra-virgem, puríssimo, português. Dispôs a mesa com prato fino e uma taça de vinho. Bacalhoada e guisado. Comeu. Lambeu os dedos. Lambeu o prato. Fartou-se.
Fez um embrulho com a bacalhoada restante. Numa vasilhinha tapeware da patroa. Levaria para casa para o jantar. Poderia convidar o vizinho, viúvo há poucos meses. Então, resolveu separar uma garrafa de vinho. Prostrou-se na poltrona, para ajudar a digestão. 15:00. Seria apertado, mas daria conta das tarefas. Precisava descansar só um pouquinho. Dormiu o sono dos extasiados, dos satisfeitos e ricos.
Acordou assustada. 16:45. A patroa deveria estar prestes a chegar. Correu para o banheiro. Certificou-se da desordem. Desceu. Colocou a vasilha e o vinho em uma sacola. Teria tempo para trocar de roupa. Voltou ao quarto, tirou o roupão. Escolheu o vestido turquesa, que a patroa comprara em Teresópolis. Sandália de salto prata. Estava linda. “Rico é que tem problema com roupas, uma para cada horário. Pobre não, veste o que achar bonito.”
Desceu as escadas. Deixou tudo como estava. Teve vontade de deixar um bilhete para a patroa:
“Lúcia arrume a bagunça. Lave bem o banheiro do jeito que o Ernesto gosta. Deixe a roupa passada. Bom dia. Dona Cida.”
Mas teve dúvida – deixe, era com “x” ou “ch”? Então, desceu, pegou a sacola. Foi embora, requebrando sobre o salto, um pouco antes da Lúcia e o Ernesto chegarem, com seus convidados para a Páscoa.
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Democracia Canina
Parte 1
Meu cachorro tem medo da mangueira do jardim. Aprendeu a ter medo. Não entende que a água que bebe, vem exatamente dali. Acabei de voltar lá de fora. Molhei o quintal e o jardim. Lavei a vasilha de água com a escovinha azul. Ele? Está longe. Despertou embriagado de sono. Com apenas um salto, saiu do cochilo, na terra vermelha batida e pernas pra que te quero. Assim, simplesmente. Correu em direção à garagem.
Ele corre sempre. A cabeçorra grande balança de um lado para o outro, olhos saltados, musculatura rija, vibra, treme. E lá vai ele no meio do nada, sem rumo ou direção. Só o faz pelo simples fato de correr, sem nem mesmo perceber que, às vezes, se coloca em uma situação ainda pior do que ficar molhado. Outro dia, numa dessas fugas desenfreadas da mangueira rumou para o canto direito do jardim. Onde está a cadeira de ferro e madeira de demolição e estacou entre ela e a plantação de cactos. Sem saída.
Pensei na possibilidade de uma escola de adestramento. Mas, às vezes, acho que ele não escuta bem. Digo a ele:
- Krug nããão.
E ele? Pula.
- Krug senta.
Pula
- Krug pára
Pula.
Ele é feito gente que lê e não entende. Entende? Do tipo que não alcança as entrelinhas. Esta ali - a palavra e o seu significado. A mangueira e a água escondida dentro dela.Feito o meu vizinho, o Ernesto. Outro dia cismou que entendeu a piada e só não riu porque não tinha graça; enquanto o resto da vizinhança ria de doer a barriga.
- Ernesto...procure escutar. Esforce. É só uma piada sobre um papagaio!
E lá vem ele com essa mania de meio ambiente e por isso não ri de piada de papagaio, porque é desumano.
- Desumano Ernesto? Presta atenção...
É, é bem desse jeito. O meu cão e o Ernesto não aprendem não. E como faço se preciso ensinar para ele, até a próxima reunião da Associação de Bairro, o que significa DEMOCRACIA?
Parte 2
Ontem sonhei com o Krug e o Ernesto. E o meu cachorro não só ouvia, mas também entendia as palavras. Então, eu disse para ele:
- Coragem Krug, não precisa ter medo da mangueira do jardim.
Ele olhou para mim, como quem pergunta e porque não deveria ter medo, se no mundo canino, todos cães sem pêlo têm medo de mangueira de jardim?
- Simplesmente porque ela lhe faz bem também.
Então, em seguida enveredei no maravilhoso mundo da água encanada e ele só ouvindo. Foi quando a campainha tocou e o Krug disse:
- Vai lá, enquanto você atende o Ernesto eu acabo de aguar o jardim.
- Como sabe que é o Ernesto?
- Ah Dalva, esqueceu que sou cachorro e tenho faro até em sonho?
Era mesmo o Ernesto, pedi para ele entrar e já fui levando para cozinha, do jeitão que se faz com amigo. Ele foi logo à garrafa de café. Lembrei que tinha guardado algo para ele.
- Peraí, Ernesto, eu já volto.
E voltei.
- Ernesto é para você.
- Presente? Ele disse como se nunca tivesse recebido um.
- É, e é todo seu. Abra.
O Ernesto ressabiado, meio acanhado, desatou o laço.
- Está vendo Ernesto, presente é bom!
Ele riu. Colocou a mão sobre a boca, tapando os dentes amarelos.
- Abra, Ernesto, quanta teimosia..
Foi quando ele se entregou de vez. Desatou o nó. Rasgou o papel de tecido brilhante. Abriu a caixa. Olhou pra dentro.
- Aí, está vendo, doeu Ernesto, ganhar presente?
Ele olhou para mim. Pequenas gotas de água brotaram dos seus olhos claros, feito as que o Krug temia.
- Obrigado. Ele disse
- Não precisa agradecer Ernesto, isso é um presente. De amigo para amigo.
- Dalva, é o que eu estou pensando?
- Veja você mesmo e tire suas conclusões...
Ele olhou para a caixa de novo e foi dizendo baixinho, com uma vozinha que saia lá do fundo:
- Presente...
- Hum hum
- É todo meu?
- Hum hum
- Pode se dar para um amigo... e não dói ter um.
- É exatamente isso.
- Obrigada Dalva, agora sei o que é DEMOCRACIA.
segunda-feira, 1 de março de 2010
Troca troca de livros
Para você que adora ler livros, cheirar livros, comprar livros, presentear livros...tenho uma sugestão. Que tal trocar livros? Apresento duas formas:
1) através do meu blog: você deve postar nos comentários deste tema: o nome e autor do livro, número de páginas e estado do mesmo, ou 2) fazendo a sua inscrição no http://www.trocandolivros.com.br/, onde deverá fazer o seu cadastro, confirmá-lo e depois inscrever um livro para troca. Meu livro já está postado lá. Gostaria de trocá-lo por algum do Mia Couto, Carlos Renatto, Adélia Carvalho, Adélia Prado, Victor Hugo, Machado de Assis, Guyde Maupassant, Ondjak etc. Vale também divulgar a idéia para amigos. Seria ótimo que indicasse o meu livro também. Então, vamos às trocas de livros e à fantástica experiência literária. Saudações.
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010
A Primeira Vez
A infância é o verdadeiro tempo
e a gente só envelhece para saber
É para lá que a gente retorna quando morre
O céu é habitar na gente mesmo, pequeno
Antônio ficara deitado no chão a tarde inteira. O sol amainara e ele apenas estalava mato verde na boca. Sem dor, o corpo solto, as pernas leves, só a cabeça pesava. E pesava, por não entender mais quem era Ana, quem era João. Se não tivesse descido ao terreiro, naquele exato momento, nada dentro dele teria mudado. E estaria uma hora dessas correndo na rua, puxando o fio, o fio levando a pipa, a pipa alçando o céu, e o céu seria todo dele e dos amigos. Esta era a constatação exata do menino, que para certos acontecimentos, não se deve existir.
Horas antes, caíra ali na grama, tonto, absorto, pesado. Um mal estar tremendo conduzira-o a um torpor. Dormira e sonhara que a grama o escondia dos adultos, que pequenas mudas o envolviam feito um cobertor verde musgo. Depois sentira pequenas alfinetadas pelo corpo, enquanto o céu descia do teto e comprimia-lhe o peito. Acordou aflito, sem ar. Pequenas formigas vermelhas passeavam por suas pálpebras e cantos da boca. Temeu ser descoberto. Tremeu por dentro. Quis chamar a Maria, mas isto não era coisa para meninas. E se não era, porque Ana fizera aquilo?
A tarde chegara ao fim. Escutou Maria chamando o seu nome:
- Antônio, Antônio, Antônio...
Levantou resolvido não contar nada do que vira para os adultos. Mas estava partido, lascado, sem tamanho, sem rumo. Ainda ouvia o farfalhar das folhas secas. As frases sussurradas na orelha de Ana. As mãos ágeis do João, borboleteando o corpo dela.
Entrou na casa. Alvoroço. Adultos rindo, falando alto. Parentes e convidados sentados por todos os lados. Enquanto ele, aparente pequeno menino se adivinhava pelos cômodos. Alguém passara a mão em seus cabelos. Antônio sentiu um calafrio. E nunca sentira frio assim. Era Ana, que lhe afagava o cabelo como sempre.
- Não.
Gritou.
As pessoas pararam para olhar de onde iniciara o grito. O pequeno Antônio no centro da sala segurava a mão da bela Ana estendida sobre sua cabeça.
- O que foi meu pequeno? Não é mais o meu príncipe?
Antônio olhava furioso para Ana. E já não a achava tão bonita. Quando se é criança, as pessoas são mais bonitas, mesmo as feias. E Ana já não era bela para ele. E ele já nem era.
A mãe preocupada acudiu logo a convidada.
- Mas o que é isso, Antônio gosta tanto de você. Antônio porque fala assim com a Ana? Olha que ela não se casa mais com você, heim?
O menino sentiu o peito arder. O coração batia ligeiro, feito pássaro contido nas mãos. Teve asco das mãos brancas dela. Queria que todos os adultos da sala se dissolvessem. Olhou para os olhos perplexos da Ana e viu a feiúra dos seus olhos claros, os dentes brancos, a boca estranhamente vermelha. Acendeu-lhe uma pequena chama de fúria, mínima fagulha em mato seco. A boca de Ana não podia...não devia...Não escutava as palavras que saiam dela. Antônio sentiu as lágrimas chegarem aos olhos. Mas ele não choraria. A boca seca, o coração vazio...
- Você não gosta mais da Ana, Toninho?
- ....
- Antônio, Antônio.
De novo Maria o chama do canto da sala, perturbada pela braveza do amigo.
Antônio se sente salvo. Vira as costas para sua antiga forma de menino. Deixa Ana surpresa, deixa o casamento com festa de pirulitos, os cabelos soltos da noiva, seus dentes brancos, os olhos cor de mel...
Avança pela sala, segura a mão de Maria.
- Quer brincar de pique-bandeira, Tonho?
O menino não responde. Descem juntos, a escada que dá para o jardim em frente à casa.
- Não Maria, eu não quero mais brincar.
- E vai fazer o que, sozinho na escada?
- Nada Maria, eu só quero olhar.
Os meninos corriam, as faces coradas, gritos e assovios. Maria entre eles destoava um pouco da mesma Maria do início do dia. Os cabelos anelados ficaram esvoaçantes, o vestido xadrez e fofo a deixava ainda mais menina. Por um momento estacou no meio do grupo, olhou para cima, descobriu Antônio na escada, fez um gesto para o amigo. Ele não respondeu, pela primeira vez, não viu sentido na correria dos amigos.
Sentou na escada. Postou o braço sobre as pernas. Lá embaixo as crianças continuaram correndo, na casa acima, os adultos bebiam e riam alto. Antônio, em silêncio, se avessava sozinho. Não cabia em nenhum dos dois mundos, nem dos adultos, nem das crianças. Olhou para o céu vestido de noite. Nunca o céu lhe pareceu tão distante, tão bonito e tão triste.
Amor
"...não muito longe daqui, onde habitam sonhos loucos, de asas grandes e pernas finas, existe uma flor. Delicada de forma e perfume, de nome absurdamente comprometedor: Flor de não me esquece...Contam que, aquele que a encontra e aspira, por um segundo que seja, não mais se esquece de quem pensar no momento. Aspira-lhe o cheiro da flor, a alma e a essência de quem se pensa. E lembra do que é de dentro, daquilo que realmente importa".
terça-feira, 9 de fevereiro de 2010
Sempre Um Papo
Em 2009 foi entrevistada no programa Sempre Um Papo, junto com mais dois escritores de Itabirito Jarbas e José Pires. A conversa percorreu vários caminhos sobre o processo criativo. Como ocorre, o recurso da técnica como auxílio e a inspiração necessária para criar. Tânia descreveu a importância de buscar conhecer muitas palavras, o seu significado, a importância da sonoridade do texto.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
Roupa no varal
Bendita chuva que cai do céu,
teto do mundo, chão de Deus.
Vento fino levantando poeira. Janelas batendo, Maria correndo. Voa folha, voa formiga, voam as pernas da calça rosa da Margarida, entrelaçam nas pernas da calça xadrez do Ovídio. Quintal. A hera verde musgo enlaça o muro, o calango agarra o chapisco e os galhos. O dia geme, o vento agita, os galhos das árvores retorcem.
Bate uma, duas, três portas. Alguém grita:
- Feche as janelas.
Maria continua correndo. Carrega a cadeira que seca tinta nova amarela no quintal. Retorna com o balde verde, grande, arranca as roupas do varal. Caem pregadores que vão um a um se amontoando no chão, escondendo entre as folhas secas, entre a grama e os resíduos do quintal.
O cão também corre na esperança de uma meia, ou perna de calça restante, para saborear e cheirar durante a noite.
O vento aumenta. Poeira nos olhos. Esfrega, esfrega, arde.
- Alguém quer fechar esta porta, por favor...
O grito do homem velho vem de dentro do quarto escuro. Maria retorna com o balde verde vazio. Sem três meias que já estão na casa do Krug, o cão; que acha que Maria brinca com ele. Pula, ladra, abana o rabo, as pulgas se agitam e voam, voam.
Joana dentro da casa fecha as janelas lentamente, o vento corre em volta dela, Joana arrasta a pouca vontade de um lado para outro. O vento ligeiro antecede à Joana e bate a aba de outra janela. Joana suspira. O vento amontoa num canto atrás das roupas colhidas no varal, esconde, encolhe e retorna por outra porta.
O dia muda, transforma, dança e dentro de Joana voam os pensamentos e estagna uma pequena fração de ar que se acumula nublando o céu do seu peito. Tempo carregado que antecede tempestade. Soubera a poucos dias que engravidara. Semente caída na terra, esquecida, pequena raiz insistente fundindo ao chão de dentro dela.
Maria entra na sala:
- Vem Joana, me ajuda, ou a chuva chega antes e molha toda a roupa.
A recente gestante não preocupa se a roupa se manterá seca ou molhada, se o velho doente estará exposto ao vento, se o dia lá fora se agita ou se acalma, se formigas...quanto a essas, ela nem mesma sabe que continuam existindo.
O namorado dissera que a amava acima de tudo e todos. Que um dia se casariam e teriam muitos filhos, que lhe daria uma casa bem linda,com quintal e jardim; e nunca,mas nunca mesmo trabalharia cuidando da casa de mais ninguém. Gravidez comprovada, namorado perdido.
Joana sabe que não mais encontrará o seu rastro, e que o filho que carrega não se perderá por nenhum tipo de mal súbito. Já sente a força dentro do ventre, chega a sentir uma pequena alminha que o habita.
Joana, só não sabe, que bem mais tarde em um outro dia de vento, a criança, seu filho correrá pelo quintal, recolherá as roupas e a cadeira camaleônica recém pintada de laranja, o pequeno correrá diante dela e atiçará o velho Krug, que já não gosta de brincadeira. O homem velho, seu patrão, antes rabujento, será o único a apoiar a sua gestação, que o fará sem nenhum comentário ou cobrança, e o menino será simplesmente a alegria dos seus últimos dias. Luz dos seus olhos.
O pequeno correrá em direção ao quintal com seu short marrom gritando:
- Corre mãezinha, antes que a chuva molhe a roupa.
E Joana não gostará que a chuva molhe a roupa lavada com tanto zelo, achará bonito o filho recolhê-la, poupando-lhe o trabalho, cuidando dela. E dentro dela nada estará pesado, o dia será leve e calmo, morno e terno. Lembrará da promessa de uma casa com jardim e quintal. Sentará no degrau da porta da cozinha, as roupas já dentro, protegidas da chuva. Esperará a chuva cair do céu, teto do mundo, chão de Deus. Entenderá que a vida tem uma forma avessa de costurar o tempo. O filho sentará em seu colo.
- Mãezinha, a chuva demora?
- Não filhinho, nada demora, nem mesmo a chuva, tudo tem seu tempo.
A mãe beijará o rosto do filho:
- Um beijo e um pedaço de queijo.
- Cadê o queijo mãezinha?
Joana sorrirá e abraçará o filho, broto verde do mundo, planta viçosa, perfeita, central de um jardim.
E os dias continuarão feitos de vento, formigas voando, cadeiras que mudam de cor, pessoas indo, filhos vindo, gente mudando e roupas secando no varal.
Marcadores:
Conto vencedor do concurso Contos dos Contos
Arco íris
A mãe, na cozinha, lava os pratos. Flores azuis, listras rosas, quadrados verdes, ou totalmente brancos. Aquelas variações de pratos que restam dos que se quebram. A filha sentada à mesa, cabeça suspensa pelos braços, balança as pernas cruzadas, de cima da cadeira alta de madeira. Ora olha a mãe, ora a janela, um pouco aberta. Do pequeno espaço azul do céu, vê-se o desfile lento de algumas nuvens.
- Mãe, passou uma agora; parece um coelho gigante, agora um sapo...
A mãe imita um coaxar. A filha sorri. A mão de mãe ensaboa, lava, transforma coisas pegajosas em livres. A gordura escoa pelo cano. Estende o pano de prato à filha que, vagarosamente, recolhe os pratos do escorredor e seca-os. Empilha-os. Observa a mãe. “Tão bonita. Vou ser assim quando crescer?” O vestido que usa, assim solto, fino e colorido, parece com o da mãe. Um pouco rosa, um pouco azul, um pouco branco. Arrasta a borda no chão, pela insistência da filha de usá-lo sem bainha; na espera de perceber o próprio crescimento aos poucos. E vê-lo atingir a canela, a batata da perna, os joelhos. “Vou saber com certeza, que já sou grande”.
O fogão parece agora estar vestido de sabão. Pensa a filha.
- Que carinha risonha é esta? A mãe pergunta.
- Mãe, pro carnaval você faz pra mim uma roupa de espuma?
- Para você deslizar na passarela?
- Não. Pra você passar a mão em mim.
As duas riem. Encontro da ironia do desejo de crescer com a essência do sonho irrefutável de criança, quando tudo é possível. Assim, da mesma forma que se pode costurar água e sabão e dar forma à fantasia.
A menina olha de novo à janela: as cores da nuvens mudaram. “Por que tudo muda? As cores e formatos das nuvens?”
- Aquela com formato de elefante, também tem células?
A mãe, gentilmente, coloca uma pequena bola de espuma no nariz da filha.
- Não, minha filha, tem água, muito vaporzinho d’água. Parece um pouco com a espuma neste narizinho.
- E nuvem coça feito espuma?
A mãe, em meio a seu próprio sorriso, pensa: “Como as idéias fermentam nesta cabecinha”. A filha, um pouco indignada com o sorriso da mãe, pergunta o que disse de engraçado.
- Nada, minha filha. Só acho que não precisa tanta pressa para entender o mundo. Venha cá.
Senta-se, coloca a filha no colo, enquanto diz:
- Um dia, quando o seu vestido estiver mais ou menos aqui na altura da sua coxa, você vai saber o porquê. A vida muda, porque faz parte dela mudar. Você não quer tanto crescer? Existem coisas de todos os tamanhos, algumas grandes, de um tamanhão imenso, e outras pequenas, bem menores que as pequenas que você conhece.
- Igual célula de formiga?
- É mais ou menos.
- Aí, você falou de novo aquilo que não é nem uma coisa nem outra. Me fala, com certeza, qual é a maior coisa do mundo. De verdade.
- A maior coisa que pode haver no mundo é o que cada pessoa traz dentro dela mesma. Chama-se sentimento.
- Parece cimento!
A filha enrola no dedo o cabelo da mãe. Solta o cacho, cai liso em sua mão.
- É mais forte que cimento.
- Maior que um dinossauro?
- É.
- Maior que um nimbo?
- Também.
- Maior que três planetas?
- Muito maior. A mãe reflete um pouco aponta para o céu e diz:
- É maior que o infinito.
- Nossa... e como cabe aqui tudo dentro da gente?
- Coração de gente é maior que o próprio tamanho. Quanto mais amor se coloca, mais cabe. Assim feito o amor de uma mãe por uma filha infinitamente perguntadeira. É como uma casa muito grande com muitos cômodos.
- Com muitas portas?
- Sim.
- Em quantas portas tem o meu nome?
- Em todas.
- Gostei. Gosto desta palavra: todas.
- E quais são as outras palavras que esta filhinha tanto gosta?
A mãe abraça e balança a filha em seu colo.
- Tudo, céu, balanço, paralelepípedo, amora e cimento. Ah. Não...esqueci.
Leva o dedo a boca enquanto lembra:
- Sentimento infinito.
A mãe olha para fora. Começam a cair os primeiros pingos de um sol com chuva, do tipo arco-íris à vista. Improvisadamente convida a filha:
- Vamos andar na chuva?
A filha não entende. Já que chuva resfria.
- Vamos filha, tire o chinelo.
“Mamãe deve estar doida.”
Mas o convite é tão surpreendentemente tresloucado e travesso que a filha permite. A chuva desce já a ladeira, formando enxurradas dos lados, barquinhos de papel sem almirantes descem tortuosamente a rua. A mão grande da mãe se oferece a da filha. A música “dançando na chuva” não existe. Apenas o riso de mãe e filha girando, girando em companhia. Mãos dadas, pés descalços, água fria.
- Sol e chuva, casamento de viúva, chuva e sol, casamento de espanhol.
- Mamãe, quem casa hoje, viúva ou espanhol?
- Não sei, minha filha.
Algumas pessoas passam aflitas e não conseguem imaginar o motivo de tanto riso.O motivo é tão simples. Tão claro feito folha verde de banho de água do céu. É um dia sem mais nem menos, sem comemoração, sem quê nem porquê. O arco-íris já se faz enfeite no céu. São mãe e filha rindo com o singelo da vida, pés na água fria, balé de pernas girando, entrelaçando-se, mãos segurando a quem ama. Comemoram sem nenhum preparo de festa. São mãe e filha.
A filha sempre girando, volta sua cabeça para o céu, caem pequenas gotas de chuva em seu rosto. Sente o coração batendo forte no peito. Fecha os olhos para impedir a água da chuva, mas continua vendo a mãe. Começa a ficar tonta, enquanto imagina a mãe vestida de nuvem....é um cimento infinito....pensa....gira...
Premiação recebida em Piracicaba - SP em março de 2008
Assinar:
Postagens (Atom)